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'Infere-se da argumentação que por ser uma mulher bonita e não apresentar anatomias 'identificadas aos negros' não sofreu discriminação e assim deveria ser excluída de concurso por sistema de cotas'

Leia a íntegra do voto do desembargador Teófilo Caetano, que manteve decisão que reconheceu uma mulher negra como cotista em concurso de Ministério Público da União, após considerar que banca examinadora do certame usou critério 'avaliativo preconceituoso e não previsto no ordenamento' para desclassificá-la do certame

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Por Pepita Ortega
Atualização:

 Foto: Reprodução

A 1ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios decidiu manter decisão que reconheceu uma mulher negra como cotista em concurso de Ministério Público da União, após a banca examinadora não reconhecer 'sua condição de candidata negra'. No entanto, o que chamou atenção no acórdão foi o voto do desembargador Teófilo Caetano, que apresentou o entendimento vencedor no julgamento. Na avaliação do magistrado, a moça foi desclassificada do sistema de cotas em razão de ser "uma mulher bonita e não apresentar as anatomias 'identificadas aos negros'".

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"A avaliação fenotípica com essa finalidade (aferição de concorrente como pessoa negra) deve estar restrita tão-somente a identificação de raça, não suportando outras especulações sobre o estereótipo do candidato, inclusive o estético. Salta aos olhos acerca do que sustentara o apelante (entidade responsável pelo concurso) de que, após a avaliação das características fenotípicas da apelada, inclusive sobre o que afirmara, que a 'cor da pele também foi considerada', não apresentara traços fisionômicos historicamente passíveis de preconceitos e ordinariamente atribuídos aos negros. Ou seja, infere-se indubitavelmente de tal argumentação que, por ser uma mulher bonita e não apresentar as anatomias "identificadas aos negros" (cabelo crespo, nariz e lábios extremamente acentuados, cor da pele negra evidenciada) não sofrera discriminação, conquanto seja negra/parda, e, portanto, deveria ser excluída do certame pelo sistema de cotas", registrou o desembargador.

O caso foi levado ao Judiciário por Rebeca Silva Mello, que se inscreveu no 10º Concurso Público para provimento de cargos de Analista e de Técnico do Ministério Público da União, na condição de candidata negra, para concorrer a uma das vagas destinadas ao cargo de técnica na área de administração. No entanto, após aprovação, a banca organizadora da qualificação indeferiu sua candidatura no procedimento administrativo de verificação da condição de candidata negra.

O juízo da 14ª Vara Cível de Brasília acolheu o pedido de Rebeca e determinou o reconhecimento de sua condição de cotista. Responsável pelo concurso, o Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos apresentou recurso contra tal decisão, o que levou o caso aos desembargadores da 1ª Turma Cível do TJDFT.

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O processo foi então distribuído para relatoria do desembargador Hector Valverde Santana, que votou no sentido de acolher o recurso do Cebraspe e reformar a decisão de primeira instância. No entendimento do magistrado ' não cabe ao Poder Judiciário entrar no mérito dos atos administrativos, em substituição à banca examinadora'.

No entanto, o entendimento que a maioria da 1ª Turma Cível do TJDFT acompanhou foi o do desembargador Teófilo Caetano, que abriu divergência no sentido de que a decisão da banca que desabilitou Rebeca no concurso do MPU 'afrontara a razoabilidade, a proporcionalidade e sem qualquer motivação plausível diante da incongruência lançada em cotejo com seus próprios atos anteriores de heteroidentificação' da autora. Em três outros concursos organizados pelo Cebraspe ela foi foi considerada apta a concorrer às vagas reservadas aos negros.

"A incoerência da banca 'configura ofensa aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade, notadamente porque fere a identificação de raça do indivíduo/candidato e destinatário da promoção afirmativa de restauração social, cujo espírito volvida-se à mitigação da desigualdade social e discriminação social'", registrou Caetano.

O desembargador frisou ainda que a consideração de traços estéticos na avaliação pela banca é um critério 'avaliativo preconceituoso e não previsto no ordenamento', além de ter se demonstrou 'totalmente desproporcional e sem qualquer critério razoável de aferição, posto que não coaduna com todos os demais elementos e características da candidata, sejam fenotípicos, sejam sociais e racial'.

"Significa afirmar, então, que somente as negras/pardas que não apresentam traços estéticos socialmente estabelecidos como padrão de beleza são as que sofreram discriminação social e preconceito racial e estariam habilitadas a ingressarem no serviço público pelo sistema de cotas?", chegou a questionar o relator designado.

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Na avaliação de Caetano, tais questões configuram 'vícios passíveis de controle jurisdicional em desobediência à lei do processo administrativo e à própria lei de cotas ao ingresso no serviço público, assim como por inobservância ao determinado no controle judicial elaborado pela Corte Suprema acerca dos requisitos exigidos para validação e veracidade da heteroidentificação, como etapa regular do concurso público'.

"O que emerge, outrossim, é a impossibilidade do agente em lançar critérios superficiais, aparentes ou especulativos sob infundada alegação de padronização de quem "realmente" sofrera ou não preconceito racial tão-somente carreada em análise estética, caminho esse que, além de ilícito, se mantido, autorizar-se-ia a propagação de injustiças e estabelecer-se-ia, ao contrário do que emana no consciente ou na motivação de tais atos, o inverso do que essencialmente a ação afirmativa visa combater ou mitigar, que são as desigualdades sociais, as discriminações nocivas e os preconceitos nefastos, promovendo-se evidente vulgarização às avessas desse elevado instrumento de política pública, afetando-lhe com instabilidade e insegurança jurídicas", ponderou o magistrado.

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