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Impacto da covid-19 na economia: a contribuição dos cartéis de crise

Restrito a setores estratégicos da economia, o ajuste entre competidores pode ajudar na manutenção de empresas e empregos

Por Victor Rufino
Atualização:

Victor Rufino. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A pandemia causada pelo novo coronavírus (covid-19) tem impactado enormemente a economia mundial e provocado uma crise econômica que terá consequências catastróficas em diversos setores. Entre eles, um dos mais afetado será o do transporte de pessoas em geral, por isso, têm ocupado posição de destaque na agenda regulatória governamental.

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A estratégia de contenção da disseminação do vírus, que, em grande medida, está centrada na reclusão das pessoas, infectadas ou não, em suas casas, levará a uma redução vertiginosa na demanda por serviços de transporte coletivo até que a pandemia seja controlada. Apesar disso, o transporte de pessoas, seja por avião, trem, barcas e, principalmente, ônibus, não deixa de ser fundamental para a vida dos cidadãos e para o funcionamento da economia. A preocupação com a continuidade de tais serviços, portanto, mais do que bem-vinda, é necessária.

Em qualquer equação que busque garantir que serviços ou produtos sejam ofertados com qualidade e a preços baixos, a concorrência é variável chave. Uma vez que mercados com maior número de agentes tendem a ser mais competitivos, garantir o acesso de novos competidores e a manutenção dos que já existem significa, em regra, elevar o nível de concorrência.

Acordos horizontais entre concorrentes que buscam dividir mercado, definir preços ou restringir ofertas são, em regra, proibidos pela legislação brasileira e vigorosamente reprimidos pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), uma vez que servem, comumente, à transferência de renda dos consumidores para os fornecedores, em prejuízo dos primeiros. Chamados de cartel, esse tipo de prática concertada tem objeto presumidamente ilícito, em razão de serem vistos como a mais grave infração à ordem econômica e terem efeitos, em regra, negativos sobre o mercado.

Por outro lado, em um cenário de grave crise como o que estamos enfrentando, acordos entre concorrentes poderiam significar a sobrevivência dos agentes e, no limite, do próprio mercado. Nos casos em que o objetivo é garantir a manutenção das empresas, como deve o poder público lidar com a associação entre competidores?

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Os cartéis de crise buscam responder essa pergunta. Eles podem assumir diversas formas, como os acordos de nível de preço em patamar necessário para evitar que companhias deixem o mercado; os de restrição de venda ou produção, por exemplo, para determinar cotas entre empresas e penalidades para quem produzir em excesso; aqueles de redução de capacidade; e os de restrição às importações ou exportações.

Em diferentes momentos, governos criaram ou encorajaram a criação de cartéis de crise, particularmente, durante períodos de graves instabilidades econômicas, como forma de evitar ou limitar o aumento do desemprego, estabilizar preços, adequar setores com excesso de capacidade ou garantir que parte do mercado fosse destinada a determinadas empresas.

A autorização excepcional para o ajuste entre competidores deve, contudo, estar restrito a setores essenciais e estratégicos da economia, como a distribuição de comida ou o transporte de pessoas e contar com a devida participação das autoridades da concorrência em sua formulação, implementação e controle. Qualquer autorização genérica e irrefletida ao conluio entre concorrentes, necessariamente, implicará no aumento do número de condutas ilícitas e trará mais prejuízos que benefícios à política de defesa da concorrência.

As normas antitruste já foram flexibilizadas em outras crises causadas por doenças com forte impacto econômico sobre determinados setores. Em 2001, por exemplo, a autoridade concorrencial inglesa deixou de aplicar sanções a associação de vendedores de gado que recomendou que seus membros cobrassem taxa de compradores em meio à disseminação da doença da vaca louca, como ficou conhecida. Em 2006, com propósito semelhante, os Estados Unidos (EUA) aprovaram a lei denominada Pandemic and All-Hazards Preparedness Act, que criou imunidades antitruste para agentes atuantes no desenvolvimento de produtos para controle de pandemias.

Caso recente está diretamente relacionado ao coronavírus e ao setor aéreo: o governo norueguês suspendeu por três meses a vigência da legislação concorrencial para companhias aéreas, por entender que o segmento, sob risco de falência, é imprescindível para o abastecimento e transporte no país.

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No mesmo sentido, noticia-se que está sendo negociada uma saída envolvendo as companhias aéreas brasileiras, com a supervisão da Anac e do Cade, por meio do qual poderia ser admitida a união dos agentes privados que nele atuam por meio de um acordo de restrição de capacidade. Trechos, antes operados por diferentes companhias em um mesmo dia ou horário, poderia ter voos de apenas uma delas. Todavia, esses voos seriam compartilhados com as outras empresas, reunindo as demandas como forma de reduzir custos. Pretende-se, com isso, evitar que as aéreas cheguem a situação econômica tão desfavorável que possa levar, por exemplo, a demissões em massa e, no limite, à interrupção da operação.

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Propostas como esta almejam a recuperação do setor a partir de acordos horizontais entre concorrentes e pretendem resolver problemas que surgem, por exemplo, em razão de excesso de produção, preços baixos ou excesso de capacidade. Tais fenômenos são típicos de momentos marcados por graves crises econômicas globais, nacionais ou setoriais.

Tais medidas, se implementadas com as cautelas necessárias e competente supervisão pública, podem constituir bom exemplo de iniciativa que poderá permitir que um setor tenha mais força para enfrentar essa crise, em benefício de seus stakeholders. Garantir que as empresas resistam ao período turbulento beneficiará consumidores, trabalhadores e todos aqueles que delas dependem.

Situações extremas demandam medidas extremas. Em um momento em que a solidariedade e a cooperação se tornam fundamentais como a que vivemos, soluções criativas que tenham como propósito a manutenção de empresas e empregos devem ser estimuladas.

É certo, contudo, que tais soluções trarão desafios à aplicação das normas, uma vez que ao mesmo tempo que impõem flexibilidade, tempos de recessão econômica ou queda exacerbada de demanda não devem significar imunidade genérica à aplicação da Lei de Defesa da Concorrência.

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Essa flexibilização virá, certamente, acompanhada de desconforto, uma vez que tomará espaço de aspectos tão caros aos aplicadores da lei, como previsibilidade e segurança jurídica. Por isso, é fundamental que se garanta que esse processo seja feito da maneira mais transparente possível e sujeita aos devidos mecanismos de controle.

*Victor Rufino, ex-procurador geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), sócio do escritório Mudrovitsch Advogados, mestre em Direito do Estado pela UnB e doutorando em Direito Público pela USP

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