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Há relevância e urgência para a edição da Medida Provisória 966?

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Por Ismar Viana e Fábio George Cruz da Nóbrega
Atualização:
Ismar Viana e Fábio George Cruz da Nóbrega. FOTOS: DIVULGAÇÃO E VALTER CAMPANATO/AG. BRASIL Foto: Estadão

Na última quinta-feira, 14, o Diário Oficial da União publicou a Medida Provisória 966, gerando polêmica no meio institucional de controle da Administração Pública, que enxergou a finalidade que pautou o ingresso dela como sendo uma tentativa de embaraço à responsabilização de agentes públicos no manejo de recursos destinados ao enfrentamento da covid-19, o que pode vir a ocorrer mesmo após ultrapassado o período de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional (Espin).

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A discussão tem girado em torno do alcance da Medida na apuração de responsabilização de agentes públicos, em processos de natureza cível ou administrativa, por comportamentos comissivos ou omissivos relacionados à pandemia da covid-19, o que tem sido visto pelos críticos como um estímulo à impunidade, especialmente por não se vislumbrar terem sido demonstrados os pressupostos constitucionais da relevância e da urgência, no momento da sua edição, o que pode caracterizar abuso do poder de legislar, abrindo margem, portanto, para intervenção do Poder Judiciário.[1]

Antes de qualquer juízo de valor sobre a MP 966, importa-nos questionar a efetiva relevância dela, em razão, sobretudo, do atualizado complexo normativo sancionador brasileiro. No âmbito da própria União, inclusive, foi editado o Decreto 9.830, de 10 de junho de 2019, que regulamentou o disposto nos artigos 20 ao 30 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), vetores de interpretação que objetivam garantir o regular exercício da missão sancionadora exercida pelos órgãos de estado, nas esferas administrativa, judicial e controladora, de modo que o cenário não sinaliza para qualquer risco de desordem institucional que pudesse justificar a edição da MP.

A existência desse complexo normativo associada à inexistência de dados e informações que possam indicar a ocorrência de eventuais excessos das instituições de controle, no exercício do poder estatal responsabilizador, são fatores que se prestam a objetivamente evidenciar o não preenchimento do requisito da urgência[2], mormente quando se leva em conta que as notícias jornalísticas veiculadas têm indicado para uma atuação estatal controladora pautada pelo distinto juízo de ponderação dos seus agentes na análise desses atos, até por força do disposto no artigo 22 da LINDB, que impõe isso.

Assim, mesmo em se tratando de uma Medida Provisória voltada ao disciplinamento da responsabilização de agentes públicos por atos relacionados exclusivamente ao período de ESPIN, a conclusão pela desnecessidade da MP decorre da existência de parâmetros constitucionais e legais suficientes para limitar eventual afã responsabilizador de agentes controladores.

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Por outro lado, é importante reconhecer que há uma omissão de termos contidos na própria LINDB, cuja incompatibilidade pode levar o intérprete a concluir pelo não alcance da esfera controladora. Isso porque a LINDB foi expressa ao distinguir as esferas administrativa, judicial e controladora.

Nesse sentido, não tendo o texto da MP tratado genericamente de apuração de infração administrativa, mas de atuação nas esferas civil e administrativa, é possível que interpretações nessas bases levem os Tribunais de Contas, por exemplo, que são instituições de controle com competência para responsabilizar, a utilizarem a LINDB como parâmetro normativo de interpretação, mesmo diante do enfrentamento de situações relacionadas a atos praticados durante a pandemia.

Não se pode olvidar que o excesso de normas limitadoras do exercício das ações de controle pode atingir o fim inverso a que se almeja alcançar. Se, lá atrás, em momento que antecedeu à edição da Lei n. 13.655, de 2018, a justificação da necessidade normativa e a discussão gravitaram em torno de um suposto risco de infantilização da gestão pública, de excesso do poder sancionatório e de suposto ativismo, hoje a impressão que se tem é que o risco é voltado à infantilização dos agentes controladores, como se os parâmetros normativos postos à disposição das instituições de controle com poder de responsabilização não fossem suficientes para limitar eventuais excessos ou desvios no exercício desse poder.

Numa rápida análise, é possível perceber que a MP 966, em alguns pontos, diante da largueza interpretativa que abre, induziu a possibilidade de responsabilização por omissão de um segmentado grupo de agentes, o que pode levar à conclusão da existência de destinatários próprios. É o que se extrai, por exemplo, do inciso II do art. 1º, ao elencar expressamente a hipótese de responsabilização por omissão decorrente do "combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19."

Por fim, mas não menos importante, é preciso esclarecer que, diferentemente do que veicularam alguns canais de imprensa, ao tratarem do §2º do art. 1º da MP, nada disso poderia afastar o dever de ressarcimento ao erário por danos causados ao patrimônio público, matéria de relevo e estatura constitucional com previsão no art. 37, §6º, de modo que a análise de dolo ou erro grosseiro se encontra ligada aos fins de responsabilização do agente, que não se confunde com o dever de ressarcir, fazendo-se necessária a imperiosa distinção entre reparação e sanção, sendo inconstitucional, portanto, a inauguração, pela via de Medida Provisória, de requisitos que busquem limitar o ajuizamento de ações reparatórias que tenham por fundamento dano ao patrimônio público.

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*Ismar Viana, mestre em Direito, auditor de Controle Externo e vice-presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC)

*Fábio George Cruz da Nóbrega, procurador regional da República e presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República-ANPR

[1] ADI 2.213 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 4-4-2002, P, DJ de 23-4-2004.

[2] ADI 1.717 MC, rel. min. Sydney Sanches, j. 22-9-1999, 2ª T, DJ de 25-2-2000.

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