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Guarda compartilhada em casos de violência doméstica revitimiza mulheres, crianças e adolescentes

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Por Flavia Panella Monteiro Martins
Atualização:
Flavia Panella Monteiro Martins. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Um homem que agride uma mulher, seja psicologicamente, patrimonialmente ou fisicamente pode ser um bom pai? Muitos tribunais brasileiros dizem que sim e defendem a guarda compartilhada como a melhor alternativa de convivência e desenvolvimento de crianças e adolescentes. Têm aplicado esse dispositivo como regra, mesmo antes da determinação trazida pela Lei 13.058/2014, que dispõe a atual redação do art. 1584, §2 do Código Civil, colocando a guarda compartilhada como padrão a ser aplicado, mesmo em caso de dissenso entre o casal, passando a ser obrigatória.

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A Ministra Nancy Andrighi, inclusive, reformou recentemente um acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que havia fixado a guarda unilateral da mãe por distância entre a casa da mãe e do pai das crianças e destacou que a alteração legislativa introduzida pela Lei 13.058/2014 teve o objetivo de esclarecer, definitivamente, que a guarda compartilhada não é apenas prioritária ou preferencial, mas obrigatória, afastando os entraves até então impostos pelo Judiciário como fundamento para não fixar esse tipo de guarda.

Para afastar a imposição da guarda compartilhada, os mecanismos previstos na legislação são a suspensão ou a perda do poder familiar, situações que evidenciem a absoluta inaptidão para o exercício da guarda e que exigem previa decretação judicial. Ao restabelecer a guarda compartilhada no caso citado, a relatora também destacou as diversas vantagens desse regime, com o atendimento prioritário aos interesses das crianças e dos adolescentes, o prestígio do poder familiar e da igualdade de gênero e a diminuição das disputas passionais.

Dessa forma, apenas duas condições podem impedir a aplicação obrigatória da guarda compartilhada, a saber: a inexistência de interesse de um dos cônjuges e a incapacidade de um dos genitores de exercer o poder familiar. Mas, como os magistrados e magistradas brasileiros tem analisado a questão da incapacidade do genitor de exercer o poder familiar frente à violência doméstica, que não se limita a agressões físicas, mas também abusos psicológicos e violência patrimonial contra as mulheres?

Há uma subjetividade do julgador ou julgadora quanto ao que seria dissenso, discórdia, desavença ou desentendimento entre o casal, já que muitas situações de abusos no ambiente familiar são naturalizadas por questões culturais e desigualdades históricas que pré-determinam o papel do homem e da mulher, portanto, a lei define uma conduta desejável, que em geral não representa as reais condições da sociedade.

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A violência doméstica causa uma dinâmica de abusos que com certeza atrapalha o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Ofensas e violência psicológica traumatizam todos que vivem nesse ambiente, não só a mulher, mas também os filhos, que se espelham nos comportamentos dos adultos com os quais convivem, trazendo consequências como brigas e agressividade na escola ou extrema passividade na solução de conflitos, baixo rendimento escolar, timidez excessiva e até mesmo desencadeando ansiedade ou depressão.

Estudos psicológicos evidenciam que crianças e adolescentes que presenciam violência doméstica sofrem consequências de curto, médio e longo prazo, inclusive desencadeando uma naturalização da violência, portanto, como sustentar o discurso de que a relação do homem com a mulher é uma e com os filhos é outra, se a família é uma só?

As mulheres que sofrem violência doméstica acabam muitas vezes sofrendo uma revitimização no Poder Judiciário, em que o machismo estrutural minimiza os abusos sofridos e separa a figura de péssimo marido, mas bom pai, impondo a guarda compartilhada e mantendo a mulher em contato com o seu agressor, na medida em que ambos terão que deliberar conjuntamente sobre todos os assuntos relacionados a criação da criança ou adolescente.

Existem projetos de lei em trâmite tentando mudar essa realidade, como o PL 2491/2019, que tem como objetivo que, uma vez demonstrada a situação de violência doméstica ou familiar envolvendo o casal ou os filhos, que seja garantida a guarda unilateral ao genitor não responsável pela violência. E os PL 29/2020 e PL3696/2020, que preveem a alteração do §2º do artigo 1.584 do Código Civil e acrescenta o art. 699-A ao Código de Processo Civil, para estabelecer causa impeditiva da concessão da guarda compartilhada, bem como para impor ao juiz o dever de indagar previamente o Ministério Público e as partes sobre situações de violência doméstica ou familiar envolvendo os pais (qualquer dos genitores) ou o filho.

No entanto, não raro a estrutura patriarcal e machista se apresenta também no Poder Judiciário, em que muitas decisões são pautadas em privilégios do homem branco, heteronormativo, cristão e com algum status social, colocando-o por suas características como homem de bem e valorando sua palavra frente à palavra da mulher vítima ou até mesmo quanto a palavra dos filhos ou filhas.

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Tanto que o Conselho Nacional de Justiça, reconhecendo a necessidade dos julgamentos com perspectiva de gênero, diante da desigualdade cultural, histórica, social, política e econômica que recai sobre as mulheres, lançou recentemente um protocolo que reconhece a hipossuficiência processual da mulher vítima de violência de gênero, devendo ser observado pelo magistrado ou magistrada a alta valoração das declarações da vítima, garantindo o real acesso à justiça e preservação do princípio da dignidade humana de mulheres e meninas.

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O referido protocolo também traz orientação para os julgamentos no tocante à guarda das filhas ou filhos, notadamente nas situações que envolvem relatos de violência, por meio da análise conjunta das ações distribuídas, bem como e especialmente, através da escuta protetiva, que não se limitará as ações penais, ou seja, ao primeiro relato de violência, em qualquer de suas formas, pode o magistrado ou a magistrada submeter a criança e o adolescente ao depoimento especial, meio de prova oral e pericial.

Dessa forma, pretende-se evitar o enfraquecimento das denúncias de violência pela defesa de agressores que buscam uma reaproximação com suas vítimas, guarda compartilhada ou até a guarda unilateral de crianças e adolescentes, por meio da alegação de alienação parental, bem como reconhecendo que muitas vezes os julgamentos nas Varas de Família acabam por revitimizar mulheres, crianças e adolescentes.

*Flavia Panella Monteiro Martins é advogada especialista em Direito das Famílias

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