O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 583937 QO-RG/RJ, decidiu, por maioria, o seguinte:
AÇÃO PENAL. Prova. Gravação ambiental. Realização por um dos interlocutores sem conhecimento do outro. Validade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Recurso extraordinário provido. Aplicação do art. 543-B, § 3º, do CPC. É lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro.
A matéria, porém, tem de ser analisada a partir da leitura da segunda parte do art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos [ONU/1948]:
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade[1].
Daí a ilicitude da prova coletada mediante gravação ambiental por um dos interlocutores do diálogo sem o conhecimento do outro [ou dos outros].
É que não age com espírito de fraternidade - exigido pela fonte do Direito Internacional - quem dissimuladamente grava conversa realizada com outrem.
O que há, nesses casos, é fingimento, hipocrisia, disfarce e furto, mediante fraude deliberada, de declaração, por meio de interrogatório, feito às ocultas - também chamado de interrogatório sub-reptício.
A violação e o esmagamento [intensamente dolosos] da parte final do art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, consequencia natural da fala obtida mediante burla ardilosa, impedem o reconhecimento da validade - e da eficácia - da prova obtida, às ocultas e clandestinamente, pelo interlocutor furtivo. Os arts. 5º, caput, LVI, §§ 2º e 3º da Constituição Federal[2], 11, 1 e 2 da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos[3] e 157 do CPP[4] se adequam normativamente à hipótese.
Donde a incontornável má-fé de quem rouba uma declaração. Não há, nessa ação clandestina, qualquer harmonia de vontades; nem legitimidade; nem espontaneidade; nem nada; nela predominam, contudo, a anomalia, a brutalidade, a maldade, a aversão. Isso é exatamente o oposto do espírito de fraternidade exigido pela norma contida na Carta Universal de Direitos[5], que proclama a liberdade de falar [ou de pensamento e de expressão[6]] - livre de iniquidade e do terror -, como uma das mais altas aspirações do ser humano.
A inadmissibilidade da prova obtida por meio ilícito - por violação cabal dos direitos humanos - é conducente, então, ao descarte do respectivo material, dado que processualmente imprestável e inutilizável.
A coleta da prova penal - feita mediante violência, sempre insidiosa, aos direitos humanos -, não pode, e não deve, continuar sendo admitida, perante o sistema do ordenamento jurídico brasileiro. É que no Estado Democrático de Direito - decorrente do postulado republicano, que tem como fundamentos, dentre outros, os valores da cidadania e da dignidade da pessoa humana -, os fins não justificam os meios.
*Advogado criminal. Autor de livros e artigos jurídicos. Estudou o NY Criminal Procedure Law em Nova York
[1]Grifado por conta.
[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
- 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
- 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
[3]Promulgada pelo Decreto 678/1992.
Artigo 11. Proteção da honra e da dignidade
- Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.
- Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.
[4]Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
- 1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.
- 2º Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.
- 3º Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.
[5]A Declaração Universal dos Direitos Humanos [ONU/1948].
[6]Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão
1.Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. [Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto 678/1992]