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Geladeiras vazias, falta de energia e desempregos: o silêncio do mundo diante a realidade do Líbano antes da explosão

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Por Karime Cheaito
Atualização:
Karime Cheaito. Foto: Divulgação

Na terça-feira (04/08) uma grande explosão na área portuária de Beirute, capital do Líbano, atraiu a mídia e os olhares do mundo. No início, pequenas explosões. Depois, uma mega explosão que destruiu o porto e a região ao redor.

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Até o momento, o que se sabe, é que a explosão foi causada por 2.750 toneladas de nitrato de amônio que estava armazenado sem a devida segurança desde 2013. As causas que levaram a explosão estão sendo investigadas.

O principal silo de grãos do Líbano foi destruído, deixando o país com reservas que durarão menos de um mês. Toda a infraestrutura para armazenar e importar os bens essenciais foi destruída. Estima-se que entre 80% e 90% dos seus produtos básicos sejam importados.

Marwan Abboud, governador de Beirute, disse que até 300.000 pessoas perderam suas casas e que as autoridades estão trabalhando para fornecer comida, água e abrigo. Mirna Doumit, presidente da Ordem das Enfermeiras de Beirute, disse que três dos hospitais da cidade foram destruídos.

Espantosamente, de maneira quase imediata, as autoridades de diversos países se manifestaram. Estados Unidos, Grã-Bretanha, Brasil, Turquia, República Tcheca, Alemanha, Grécia, Polônia, Holanda, Austrália, Irã, até o inimigo histórico Israel. Nesse momento, gostaria de pedir licença para uma breve atenção à França, especificamente.

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Muitos não sabem, mas a França colonizou o Líbano de 1920 a 1943. Digamos que ainda existe um aperto no peito francês por ter perdido a chamada (por eles) "Paris do Oriente Médio".

Inclusive, o Estado libanês como conhecemos hoje foi uma criação francesa. Mas não foi apenas esse seu legado na região. Durante seu domínio, os franceses atribuíram diversos privilégios às comunidades cristãs maronitas do Líbano. A afinidade religiosa foi a peça-chave para conseguir uma base de apoio que facilitasse sua penetração no território.

Quinta-feira (06/08) Emmanuel Macron, presidente da França, pousou em Beirute e se apresentou como o pai que voltou para ajudar seus filhos. Um espetáculo, como descrito por Erdogan, presidente da Turquia.

"Mas nossa, foi uma tragédia! Que bom que tantos países ofereceram ajuda ao povo libanês". Ingenuidade nossa seria pensar que nas relações internacionais existe algo sem interesses, ou no mínimo trocas.

Digo isso porque: vocês sabiam que o Líbano vive a sua pior crise econômica desde a guerra civil, que durou de 1975 a 1990? E que essa crise antecede a explosão? Por que a miséria, a fome, o desemprego e a crise generalizada que vive o povo libanês não recebeu atenção ou ajuda?

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Vou apresentar brevemente o cenário do Líbano anterior a explosão. Acredito que as geladeiras praticamente (para não dizer totalmente) vazias em muitos lares são a imagem que resume esse colapso econômico, reflexo de um colapso político. 1 dólar que equivalia à 1.500 libras libanesas, hoje é avaliado entre 9.000 a 10.000 libras libanesas. Um salário de um milhão de libras libanesas vale, nas ruas, menos de US$ 200. No verão passado, esse valor chegava a pelo menos US$ 700.

De acordo com projeções do Banco Mundial, a crise está empurrando metade dos libaneses para a pobreza extrema. Os salários perderem 90% do poder de compra com as altas inflações.

Os desempregos também alcançam porcentagens alarmantes. Até o momento, um quinto da força de trabalho está desempregada.

Não bastasse esse cenário, temos a pandemia. Com o fechamento dos comércios e as medidas de isolamento, a pobreza, inevitavelmente, subiu.

Estatísticas nos mostram que quase metade dos cidadãos do Líbano estão abaixo do nível de pobreza este ano e o governo estima que 75% da população precisará de assistência. A economia libanesa é agora uma das mais fracas do mundo, tudo isso em questão de meses.

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A população libanesa, então, está lidando com: a corrupção do governo; a falta de infraestrutura básica - a água da torneira não é segura para beber e o apagão ocorre diariamente devido o problema de energia elétrica que perdura por anos no país; cuidados de saúde pública limitados; pandemia, crise econômica, etc, etc, etc.

As pessoas, cada vez mais irritadas e frustradas com o fracasso do governo em fornecer serviços básicos, iniciaram uma onda de protestos em outubro de 2019 contra os governantes e a estrutura política libanesa, acusando-os como os responsáveis pela crise generalizada que o país enfrenta.

Agora voltamos para o ponto lá de cima: a França. O sistema político libanês, chamado de Confessionalismo, é pautado pela divisão dos poderes políticos entre as comunidades religiosas oficiais, que totalizam 18. Esse sistema estabeleceu que os principais cargos político-administrativos do país seriam ocupados, obrigatoriamente, pelos cristãos maronitas, favorecidos pela França.

Desde seu estabelecimento, esse sistema já demonstrou suas instabilidades e desaprovação por parte dos muçulmanos. A guerra civil que perdurou por 15 anos tinha em sua origem essa questão. Esse sistema, influenciado pelos franceses, foi responsável pela política de clientelismo, regionalismo e agravou as desigualdades.

O Líbano ficou em 137º lugar entre 180 países (180 sendo o pior) no Índice de Percepção de Corrupção de 2019 da Transparency International.

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Agora, com a onda de protestos em crescimento, quem apareceu andando nas ruas de Beirute com uma enorme cobertura midiática? Macron, com a proposta de reformas. Novamente, o colonizador aparece trazendo as cartas da salvação. Melhor: os colonizadores. A disputa geopolítica pelo Líbano está dada. Que comecem os lances. Que a civilização salve a barbárie!

Levanto novamente a questão: por que a crise econômica, social e política do Líbano não ocupava mais que rodapés dos jornais (quando ocupavam)? Por que houve um silenciamento e até um desconhecimento por nossa parte diante as "explosões" de fome, desemprego, questões políticas e econômicas dos libaneses?

A romantização feita constantemente da "Paris do Oriente Médio" criou no imaginário das pessoas um Líbano de dois extremos: o das incontáveis belezas, que emocionam jornalistas, e o da guerra e explosões. Fora desses dois extremos, parece que não cabe falar sobre o Líbano. Não cabe falar sobre a crise econômica, fome e corrupção.

Essa romantização mascara um conjunto de desigualdades e problemas que são enfrentados cotidianamente por um país que está no centro dos interesses geopolíticos.

Aos poucos, vemos as notícias diminuírem, o tempo dado aos telejornais diminuírem e logo, como é de praxe, o Líbano volta as notas de rodapé (quando volta). Infelizmente, os problemas não diminuem na mesma velocidade que as notícias e o pesar. Assim como não diminui os interesses das potências sobre o pequeno território.

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*Karime Cheaito, cientista social com especialização em ciência política

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