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Fôrma sem forma

As medidas de resolução da crise não podem se prestar ao afastamento do regime republicano de responsabilização, tampouco colocar o controle em quarentena, sob pena de torná-lo oco

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Por Doris de Miranda Coutinho
Atualização:

Doris de Miranda Coutinho. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em um sistema institucional de poderes limitados, a responsabilidade dos agentes públicos apresenta-se como um dos elementos essenciais à configuração da própria ideia de República, que se contrapõe ao arranjo jurídico-político que, nos regimes absolutistas, se assentava na irresponsabilidade pessoal do monarca por seus atos. O regime de responsabilidade, portanto, na acepção eternizada por Geraldo Ataliba, traduz uma das mais relevantes e inelutáveis conquistas da democracia, da qual se extrai a lição de que todos os agentes públicos são responsáveis perante a lei.

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A submissão à vigilância constante da sociedade e dos órgãos fiscalizatórios corresponde, desta feita, ao passivo que vem a equilibrar o ativo do poder, impondo constrições permanentes ao seu exercício, com vistas a evitar abusos e locupletamentos, bem como fazer com que a Administração Pública corresponda às expectativas e necessidades dos seus administrados.

Um olhar retrospectivo para a história democrática, contudo, permite concluir que, em tempos de anormalidade, exsurgem tentativas (por vezes bem-sucedidas) de fragilizar o sistema de responsabilização e elevar o nível de opacidade no setor público, viabilizando o incremento das competências discricionárias e, por conseguinte, o potencial de cometimento de arbitrariedades e medidas de viés autocrático pelos governantes de ocasião.

À luz dessas considerações é que se revela preocupante a edição da Medida Provisória nº 966, de 14/05/2020, cujo teor impõe restrições à responsabilização, nas esferas civil e administrativa, dos agentes públicos por decisões ou omissões relacionadas ao enfrentamento da pandemia da covid-19 ou no combate aos seus efeitos econômicos e sociais. Isso porque a medida provisória condiciona a eventual punição do administrador-infrator à existência de dolo pessoal ou erro grosseiro, sendo este o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave em elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

De fato, na aferição da ocorrência do erro grosseiro, deverão ser considerados aspectos concernentes à existência de obstáculos, dificuldades reais (primado da realidade) e as circunstâncias práticas limitativas à atuação do gestor, além da complexidade da matéria e das suas atribuições, a incompletude de informações na situação de urgência e o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas de enfrentamento, afunilando sobremaneira o controle exercido sobre tais equívocos.

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Embora não conste expressamente no texto normativo, parece certo que a referência à esfera administrativa engloba a denominada "esfera controladora", específica dos Tribunais de Contas.

Essa redução do espectro de responsabilização promovida pela MP 966/2020 se associa a outros atos normativos cujo propósito é, no mínimo, nebuloso. A exemplo da previsão constante do art. 10, da EC 106/2020, que "convalidou" os atos de gestão praticados a partir de 20 de março 2020, suscitando dúvidas acerca da abrangência dessa convalidação. Nem se diga sobre a pretendida - e acertadamente obstada - supressão de eficácia de dispositivos da Lei de Acesso à Informação, marco normativo da transparência pública no Brasil.

É induvidosa a necessidade, despertada pela singularidade das circunstâncias atuais, de se adotar medidas incogitadas em tempos de normalidade, sobre as quais não há precedentes que sirvam de suporte decisório, relegando ao gestor público a difícil missão de interpretar a melhor solução, em termos jurídicos, sociais e econômicos, para os inéditos problemas oriundos da emergência sanitária. Aqui, como na poesia de Antônio Machado, não há caminho; se faz caminho ao caminhar.

A tal propósito, diversos instrumentos foram efetivados com o intuito de flexibilizar controles prévios e dispensar a observância de limites legais impeditivos. Como aqueles impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, referentes à criação ou expansão de despesas públicas e à implementação de renúncias de receitas. Tudo a fim de conferir maior espaço de atuação segura e criativa ao gestor no contexto pandêmico. No mesmo sentido, as instituições de controle estão se orientando mais pela atuação pedagógica no tocante aos atos de gestão relacionados à covid-19.

No entanto, embora as medidas de resolução da crise reclamem coragem e altivez do administrador público, não se pode enveredar por caminhos mal iluminados, ou que se afastem do regime republicano de responsabilização e, por isso, do Estado democrático de Direito, inserindo no mesmo círculo de desresponsabilização, gestores que, animados pela intenção de reduzir os efeitos sociais e econômicos do vírus, busquem realizar boas contratações e promover políticas tempestivas, e aqueles que se valem da pandemia como um pretexto para enriquecer-se ilicitamente. Não há que se submeter também o controle republicano a uma quarentena, sob pena de torná-lo oco. Uma fôrma sem forma, força paralisada, gesto sem vigor.

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*Doris de Miranda Coutinho, conselheira do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins. Doutoranda em Direito Constitucional. Mestre em prestação jurisdicional e direitos humanos. Especialista em política e estratégia e em gestão pública com ênfase em controle externo. Membro honorário do (IAB) Instituto dos Advogados Brasileiros. Escritora e pesquisadora

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