Aquilo que chamamos acasonão é, senão, a causa ignorada de um efeito conhecido. (Voltaire)
A análise de fatos ou instituições em quadros estáticos, como fotografias que apenas captam o momento exato que se pretende visualizar, sempre traz o risco de atribuir ao acaso causas que não devem ser ignoradas.
O acaso afasta a relação de causalidade, apaga a origem e o fim a que algo se destina, sendo o justo oposto a um determinismo filosófico.
O Ministério Público Brasileiro não é fruto do acaso. Deriva de uma construção remota, conhecida e contínua que edificou uma instituição arquitetonicamente alinhada às premissas iluministas de separação das funções do Estado - marcadamente as funções de iniciativa e de julgamento - e guarnecida com as mobílias procedimentais garantidoras de segurança jurídica e controles internos e externos (checks and balances system).
São legítimos - embora possam haver divergências interinstitucionais - os movimentos legislativos que, ao longo da história, buscaram alterar o bloco de atribuições, as garantias ou o desenho institucional do Ministério Público. Foram e são, inclusive, responsáveis por grandes catarses institucionais que, mais uma vez, reforçam o afastamento do senso do acaso para todos e cada um dos mecanismos internos do Ministério Público.
Causa espécie e preocupação, todavia, movimentos tendentes a gerar fissura naquela que pode ser a maior de todas as garantias, não para a instituição ou para os seus membros, mas para o cidadão: o sistema acusatório.
O assenhoramento da caneta atribuída de ação por aquele que detém a caneta de julgador representa perigosíssimo retorno a um status pré-iluminista de concentração de poderes.
Mais preocupante ainda são movimentos autofágicos decorrentes de querelas paroquiais que, com deliberada cegueira sobre suas consequências, coloca em risco a instituição Ministério Público Brasileiro como um todo, suas atribuições e, principalmente, os destinatários de suas funções.
Notícia de que parlamentar teria ido ao Supremo Tribunal Federal para pleitear o afastamento do procurador-geral da República de suas atribuições naturais, sob a alegação de suspeição, importaria, em havendo atendimento pelo Supremo do pleito, em 1) absoluto desbordamento das competências do Supremo Tribunal, por invadir esfera privativa do Congresso Nacional e 2) desestruturação da arquitetura orgânica decorrente da Lei 8.625/93, especialmente o artigo 15, que fixa as atribuições do Conselho Superior do Ministério Público.
A alocação das atribuições do Ministério Público obedeceu a uma ratio legis [razão de ser] que passa ao largo do acaso e sua eventual modificação deve considerar sua origem e as consequências das modificações que, ainda que com críticas, poderiam ser propostas pelo Congresso Nacional, mas nunca feitas por uma caneta judicial.
A defesa das atribuições e prerrogativas do Ministério Público, longe de representar privilégios realengos, é a trincheira para o exercício livre de atribuições que impactam na vida da República e de seus cidadãos.
*Carlos Vinícius Alves Ribeiro, membro do Ministério Público do Estado de Goiás. Membro da presidência do CNMP. Secretário da Escola Superior do MPU. Mestre, doutor e pós-Doutor em Direito de Estado (USP). Pós-Doutor em Democracia (Coimbra). Professor de Direito Administrativo (IDP)