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Execução penal genocida e esquizofrênica

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Por Alexandre Langaro
Atualização:

Alexandre Langaro. FOTO: ARQUIVO PESSOAL  Foto: Estadão

  1. A execução penal no Brasil é um faz de conta macabro. Não por falta de normas. Mas, sim, pelo uso -- e abuso chapado --, por parte dos operadores[1] do direito, da Epistemologia Neokantiana [Kant mais Hegel]. Epistemologia essa -- ou metodologia do conhecimento, se se preferir -- que não permite a análise e a interpretação de qualquer dado fundado em base empírica real e idônea. [Por exemplo, a superlotação e a superpopulação carcerárias]. Não raro, Brasil afora, no lugar de um preso há cinco. Faça-se um exercício mental no seguinte sentido: pegue o [a] leitor [a] um par de sapatos e ao redor risque um círculo rente; depois, tente colocar cinco sapatos [do mesmo tamanho] dentre desse círculo. Isso é possível? Assim opera o sistema penitenciário[2]. Sistema pressupõe ordem. Logo, as palavras 'sistema penitenciário' constituem uma incontornável contradição nos termos. 'Sistema', portanto, não o é -- nem de longe.

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  1. A Sociologia, a História, a Criminologia e a Psicologia, por conseguinte, não conversam com as normas e elas [as normas] não dialogam com a realidade. Isso então permite o escamoteamento dos dados da realidade -- que, por óbvio, não são avaliados -- ao se impulsionar a marcha da execução penal. Tudo permanece, dessa maneira, comodamente, nos domínios do dever ser, do ideal, do abstrato, da vida pensada. O ser, o real, o concreto, a vida vivida, em tal caso, não contaminam -- consciente ou inconscientemente -- a pureza e a lógica inerentes à ambiência normativa. A execução penal, porém, não se realiza no campo normativo. A marcha do processo executivo penal se faz no mundo da vida. Surgindo daí o violento, distorcido, desumano, degradante e cruel descompasso. Em termos estritamente penais, isso quer dizer tortura -- presente a existência de sofrimento físico e mental dos presos.

  1. Ao juízo da execução, órgão da execução penal, compete, todavia, zelar pelo correto cumprimento da pena.

  1. Ao operador do direito cumpre -- partindo dos dados coletados empiricamente na vida real -- interpretar as leis penais a partir da Constituição Federal e do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

  1. [3]As Cadêas[4] serão seguras, limpas, o[5] bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos Réos[6], conforme suas circumstancias[7], e natureza dos seus crimes. 

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  1. A matéria, portanto, é velha e perseverante. Velha, perseverante e omitida -- ou, na melhor das hipóteses, olvidada. O ser, contudo, por evidente, continua apartadíssimo do dever ser. Há campo propício, decerto, a partir desse dado irrefutável, para o operador jurídico atuar. E atuar considerado esse contexto terrivelmente perverso. Atuar, alfim, para resgatar e promover, nessa quadra impregnada de hipocrisia e eufemismos, a dignidade da pessoa humana.

  1. Os estabelecimentos penais teriam de ser pensados pelos operadores jurídicos -- e isso decorre, naturalmente, da eficácia do sistema do ordenamento positivo em vigor -- de acordo com a modelagem própria de um hotel, simples, limpo, arejado, com conforto térmico, banho quente, quarto individual, alimentação saudável, roupas de cama trocadas diariamente e um extensíssimo etcétera. Como determinam as Regras de Mandela[8]. Regras de Mandela que, obrigatoriamente, têm de ser interpretadas e aplicadas pelo juízo da execução penal, no Brasil inteiro.

  1. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça -- CNJ --, no dia 31 de março de 2016, na 232ª Sessão Ordinária, publicou essas Regras de Mandela[9]. O então presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski[10] assentou, na ocasião, que as Regras de Mandela podem e devem ser utilizadas como instrumentos a serviço da jurisdição, porque têm aptidão para transformarem o paradigma de encarceramento praticado pela Justiça brasileira. A questão é apenas essa e dela tem de cuidar rigorosamente o juízo da execução penal. É de impertinência grosseira a invocação, no ponto, pelo Estado-Juiz, de qualquer 'razão de estado' [motivos políticos, administrativos, financeiros, de contabilidade, de conveniência e de oportunidade], como ensina o eminente ministro, aposentado, Celso de Mello, para quem Razões de Estado -- que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo -- não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição[11]. 

  1. A tortura e a irracionalidade têm de ser erradicadas[12]! É que a toda pessoa privada de sua liberdade assiste o direito de ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana[13].

*Alexandre Langaro, advogado criminal. Autor de livros e artigos jurídicos. Estudou o NY Criminal Procedure Law em Nova Iorque

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[1][O vocábulo 'operador' é aqui utilizado no sentido atribuído Rudolf von Ihering. Ou seja, da operabilidade do Direito. Isto é, de que o Direito existe para ser realizado -- se não puder ser realizado então não é Direito].

[2][https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/10/mutirao_carcerario.pdf].

[3][Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824, art. 179, XXI].

[4][Sic].

[5][Idem].

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[6][Ibidem].

[7][Idem].

[8][https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2016/05/39ae8bd2085fdbc4a1b02fa6e3944ba2.pdf].

[9][https://www.cnj.jus.br/cnj-publica-traducao-das-regras-de-mandela-para-o-tratamento-de-presos/].

[10][Idem].

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[11][STF -- RE 204769/RS].

[12][https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/10/mutirao_carcerario.pdf].

[13][Pacto Internacional sobre Direitos Civil e Políticos. Promulgado pelo Decreto 592, de 6 de julho de 1992].

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