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'Eu sou a favor da ciência, temos que trabalhar nos limites da ciência', diz presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo

Em entrevista ao 'Estadão', desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco, próximo de concluir seu mandato no topo da maior Corte estadual do País, revela detalhes de sua estratégia e do Conselho Superior da Magistratura para uma produção espetacular de 53 milhões de feitos processuais e superar o fantasma da pandemia que assombra o mundo há quase dois anos; magistrado defende enfaticamente a exigência de comprovante da vacinação nos aeroportos, demonstra inquietação com o uso de verbas de precatórios para outros fins e prega urgente legislação específica de amparo a cidadãos das ruas castigados pela miséria e pelo 'vício ao extremo'

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Por Pepita Ortega e Fausto Macedo
Atualização:

Geraldo Francisco Pinheiro Franco. FOTO: PAULO SANTANA/TJSP Foto: Estadão

No crepúsculo de sua gestão na presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo, a maior Corte estadual do País com 18 milhões de processos em curso, o desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco mantém posições firmes, na mesma linha de convicções que nortearam toda sua longa carreira, sobre questões sensíveis à população nesses últimos dois anos - período marcado pelo flagelo da pandemia da covid-19, que fez mais de 617 mil mortes. O magistrado da maior Corte da América Latina defende vigorosamente a ciência e a importância do passaporte da vacina: "Não ofende direito algum".

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Com relação ao tema dos precatórios, o desembargador diz ter uma 'restrição pessoal' sobre a extensão do prazo para pagamento dos valores devidos pelo Estado em ações judiciais para 'solucionar questões orçamentárias ou econômicas'.

A PEC dos Precatórios o incomoda. Por essa emenda à Constituição, o governo Bolsonaro garante a execução do Auxílio Brasil, programa social da ordem de R$ 40 bilhões, dinheiro originalmente destinado à quitação obrigatória de dívidas judiciais da União, Estados e municípios. "Não é suportável que o cidadão é que acabe com esse ônus e ver mais uma vez, por longos anos, o que lhe é devido não ser pago", pondera.

Já quanto a temas mais voltados à magistratura em si, Pinheiro Franco acredita que as sanções previstas na lei maior da classe, a Lei Orgânica da Magistratura (Loman), devem ser alteradas, inclusive com a exclusão da polêmica aposentadoria compulsória - hoje considerada uma das punições mais graves para os magistrados. "Eu não me sinto à vontade de aplicar", diz.

Aos 65 anos, que está completando nesta sexta-feira, 17, há 41 na magistratura, filho do destacado desembargador Nelson Pinheiro Franco - que também presidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, entre 1986 e 1987 -, pai de duas filhas, uma advogada residindo e trabalhando em Londres, a outra da área de marketing, Geraldo Francisco Pinheiro Franco assumiu o comando do Tribunal de Justiça de São Paulo em janeiro de 2020.

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Iniciou sua gestão sob a turbulência de uma tarde de inundações na cidade de São Paulo, castigada por pesada tempestade. Viu-se, então, forçado a adotar medida drástica: mandou fechar o Palácio da Justiça, imponente construção da década de 1920. Menos de três meses depois, em 13 de março, seu maior desafio: o fantasma da pandemia que assombra o mundo até hoje.

"Uma medida difícil. Palácio da Justiça, 320 comarcas, 700 prédios. Foi uma medida muito difícil, porque eu, sentado aqui, fiquei imaginando junto com o conselho fechar o maior tribunal do País, o que isso poderia acarretar. O Judiciário fechando as portas", pondera.

Pinheiro Franco presidiu um colosso do Judiciário nesses dois anos. O TJ paulista conta 360 desembargadores - não há tribunal no mundo com tantos magistrados de segunda instância -, 2 mil juízes de primeiro grau, 40 mil servidores , 320 comarcas e 700 edificações em todo o Estado. Em janeiro próximo ele se despede da presidência e retorna à sua Câmara de origem, a 5.ª Câmara de Direito Criminal. Será substituído pelo desembargador Ricardo Mair Anafe, eleito por seus pares para mandato no biênio 2022-2023.

Nesta entrevista ao Estadão, Pinheiro Franco fala de sua experiência no topo da Corte, os dois anos marcados pela tragédia da pandemia, época em que superou grandes obstáculos e, ao lado de seus pares, levou o tribunal a um feito inigualável - mais de 53 milhões de atos processuais produzidos remotamente, em sua maior parte, desde o início da crise sanitária até outubro passado, entre sentenças, despachos, acórdãos e tantos outros procedimentos inerentes à toga.

O desembargador ainda aborda críticas à Corte que preside pela fama de 'mão pesada' em seus acórdãos e faz uma reflexão sobre a situação social que o País atravessa. Ele prega uma legislação específica para cidadãos 'absolutamente abandonados, levados ao vício ao extremo'.

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Pinheiro Franco exerce a presidência do TJ até o dia 31 de dezembro. No dia 1º de janeiro, o desembargador Ricardo Mair Anafe assume a cadeira.

Confira a entrevista de duas horas, aproximadamente, do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco, concedida ao Estadão na tarde da última segunda-feira, 13, em seu gabinete - uma sala espaçosa e sisuda no quinto andar do Palácio da Justiça, na Sé. Chovia com alguma intensidade, impondo revés maior e desconforto às tantas famílias que perambulam aos pés da Corte, no coração da metrópole.

Geraldo Francisco Pinheiro Franco. FOTO: PAULO SANTANA/TJSP Foto: Estadão

ESTADÃO: Quais foram as principais preocupações do sr. nesse mandato?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Preocupações não faltaram. Eu acho que o objetivo maior do juiz é julgar os processos rapidamente e bem, mas ao mesmo tempo ele tem que ter olhos para outros problemas. O menor, o problema da adoção, o problema da violência contra a mulher, o idoso. Então eu acredito que hoje, eu vejo que é uma realidade, além de julgar, o juiz está aberto a ter outras atividades junto com a sociedade civil. Isso é uma preocupação que nós tivemos. Então o juiz tem que julgar rápido e bem, mas não deve se esquecer de questões que podem inclusive refletir de uma diminuição da necessidade dos processos. A gente tem uma responsabilidade muito grande que é, se de um lado nós julgamos, de outro lado nós temos a responsabilidade de viabilizar projetos para que sequer isso chegue a julgamento.

No campo da violência contra a mulher me lembro muito bem que, quando eu era juiz do Tacrim (antigo Tribunal de Alçada Criminal), eu estava com processo de homicídio em que a mulher foi vítima de ameaça. Na época as coisas não eram muito claras com relação a essa questão da violência. O réu do processo de ameaça acabou obtendo a liberdade, porque a pena era muito pequena. O ato seguinte ele matou a mulher. Isso me chamou muita atenção, da importância da gente não só crer no que a mulher está dizendo, mas fazer alguma coisa para que isso não aconteça.

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Outra preocupação que nós tivemos foi, sem nenhuma crítica a ninguém, sanear o orçamento do tribunal. Hoje nós temos um tribunal há quase dois anos no orçamento sem nenhum déficit. Com a execução orçamentária bem ajustada aos limites do orçamento. Outra preocupação foi o investimento na área de tecnologia da informação. Um tribunal desse tamanho, no século 21, se nós não tivermos uma tecnologia em formação muito adequada, nós não conseguimos dar um passo para frente. Então, nesses dois anos, investimos pesadamente nessa área e está indo muito bem. Isso a gente também deve a presidentes anteriores, porque só chegamos aonde chegamos porque há 15 anos o tribunal está investindo.

Geraldo Francisco Pinheiro Franco. FOTO: PAULO SANTANA/TJSP Foto: Estadão

A gente tem uma responsabilidade muito grande que é, se de um lado nós julgamos, de outro lado nós temos a responsabilidade de viabilizar projetos para que sequer isso chegue a julgamento

ESTADÃO: Quantos processos a Corte tem hoje?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Em torno dos 18 milhões. 75% são processos digitais e 25% são processos ainda papelizados. Mas já há um projeto sendo executado de digitalização. Em quatro anos nós vamos estar 100% sem nenhum processo papelizado. Isso faz a diferença. Já mostrou que faz a diferença.

ESTADÃO: Foram mais de 50 milhões de feitos processados no período da pandemia. Isso também se deve a essa digitalização?

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DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Também a essa digitalização. Decorre de algumas coisas, uma delas é digitalização, sem dúvida nenhuma. A segunda, a circunstância de que nós aprendemos que o home-office é um instrumento importante. Tanto que o tribunal já baixou dois atos, um pela presidência e outro pelo órgão especial, no sentido de que, acabada a pandemia, uma parte do tribunal na área jurisdicional permanece em home-office e outra parte de volta. Na área administrativa mais servidores ficam em casa trabalhando e menos no palácio. Nós percebemos que houve uma implementação do trabalho de todos.

ESTADÃO: Uma ampliação?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Houve uma ampliação, inclusive porque a comodidade de você trabalhar em casa faz com que você ganhe horas a mais para você poder trabalhar. Então, isso fez uma diferença muito grande. Tanto que nenhuma instituição do sistema judiciário, nem advogados, promotores, nem defensores, ninguém reclamou. Pelo contrário, todo mundo aderiu e a gente foi para frente com esse trabalho.

ESTADÃO: A permanência em home-office é opcional?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: É opcional tanto para os servidores como para os magistrados. Na área jurisdicional, por exemplo, hoje limitada a 50%, em rodízio. Na área administrativa, limitada a 30% no prédio, 70% trabalhando em casa. Então tem essas duas circunstâncias, são diferentes. Se de um lado a gente entende que o home-office é interessante, e o tempo mostrou isso, de outro lado a gente tem muito claro que não há possibilidade de os fóruns não terem juízes ou não terem funcionários. Então é preciso que haja um tratamento híbrido dessa questão.

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ESTADÃO: Trouxe uma economia?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Sem dúvida nenhuma. A economia de auxílio-transporte era algo em torno de R$ 10 milhões por mês, então tudo isso foi destinado a investimentos novos e, no primeiro ano, ajudou a suprir o déficit orçamentário que nós verificamos. Então tudo isso nos ajudou. Quando eu assumi, verifiquei que havia um déficit orçamentário da ordem de R$ 700 milhões, R$ 350 milhões por conta de falta do orçamento de 2019, R$ 350 milhões por não previsão no projeto de lei orçamentária de 2020. Imediatamente nós baixamos três atos de contingenciamento. Apertamos o parafuso. Tudo que pode ser economizado foi economizado. Todos os contratos foram revistos. Todas as metas foram revistas. Nós fizemos um trabalho bastante amplo para que a gente pudesse ter meios efetivos de sanar aquele problema do déficit e poder administrar o tribunal com mais tranquilidade. E foi possível, com a força de todos.

ESTADÃO: Está há quantos anos no Judiciário?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Em janeiro completo 41 anos. Antes fui procurador do Estado, antes disso estagiei em um escritório grande de São Paulo e antes disso eu fui funcionário do I Tribunal de Alçada, em 1975.

ESTADÃO: Presidente, qual foi o momento mais difícil nesses dois anos?

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Apertamos o parafuso. Tudo que pode ser economizado foi economizado. Todos os contratos foram revistos. Todas as metas foram revistas

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Eu acho que tiveram dois momentos. O primeiro foi logo ao sentar nessa cadeira, verificar a dificuldade com o déficit orçamentário. Um tribunal do porte desse tribunal, maior tribunal das Américas, o maior tribunal do País, com uma dificuldade orçamentária. Foi um momento bastante difícil e ficou muito claro que era a hora de tomar algumas medidas muito claras para combater isso. Elas foram tomadas e todos entenderam a necessidade. O segundo momento foi a pandemia, porque nós estávamos aqui, no dia 12 de março, sentados em uma reunião do Conselho Superior da Magistratura. Nós não tínhamos, talvez ninguém tivesse, a imagem de que viria uma pandemia dessa projeção. Então nós tomamos uma primeira medida, que foi fechar os fóruns e fazer plantão, mas plantão físico. Dois dias depois, quando nós vimos que o problema era muito maior, daí nós fechamos todo o Poder Judiciário do Estado de São Paulo. Uma medida difícil. Palácio da Justiça, 320 comarcas, 700 prédios. Foi uma medida muito difícil, porque eu, sentado aqui, fiquei imaginando junto com o Conselho Superior da Magistratura fechar o maior tribunal do País. O que isso poderia acarretar. O Judiciário fechando as portas. Daí nesse momento, juntamente com a equipe de TI, nós conseguimos estabelecer meios, por web connection, de todos esses 40 mil funcionários, três mil juízes e 15 mil prestadores de serviço trabalharem em casa. E em uma semana, em dez dias, toda essa massa estava em casa trabalhando, já adaptada. Tenho que fazer um elogio aos meus antecessores, que investiram na tecnologia da informação, porque nós não teríamos conseguido. Nesses dez dias nós conseguimos inverter o papel, virar todo o acesso interno para o acesso externo. São duas situações técnicas diferentes. E fomos aprendendo. No começo fomos despachando, começaram aos poucos as sessões de julgamento no tribunal, as sessões de julgamento nas varas, depois veio o Órgão Especial, que é o órgão mais importante do tribunal, e quando nós nos deparamos estava tudo funcionando às mil maravilhas. Todo mundo que precisou da Justiça nesses dois anos teve acesso à Justiça.

Eu me preocupei muito em manter unido o tribunal. Foi uma preocupação severa. Como que eu vou manter o nível do tribunal se todos estão em casa? De tempos em tempos eu emitia um uma nota. Uma nota dizendo 'Olha, nós estamos enfrentando uma dificuldade. Estamos juntos nisso, estamos aprendendo'. Eu fui sentindo, em todas as minhas comunicações, que as pessoas começavam a entender a nova vida que nós estávamos fazendo, e mais, a participar dela. Todo mundo começou a se relacionar melhor. Isso foi uma coisa boa para a instituição.

Geraldo Francisco Pinheiro Franco. FOTO: PAULO SANTANA/TJSP Foto: Estadão

Palácio da Justiça, 320 comarcas, 700 prédios. Foi uma medida muito difícil, porque eu fiquei imaginando junto com o Conselho Superior da Magistratura fechar o maior tribunal do País. O que isso poderia acarretar

ESTADÃO: Agora o sr. deixando a presidência, qual é o plano?

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DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Eu volto para a minha Câmara. Eu sou membro da 5.ª Câmara Criminal. Volto como integrante para julgar a matéria criminal da Corte. E não sei, no futuro. A minha ideia inicial é simplesmente voltar. Isso não implica, em daqui um ano, dois anos, três anos, pensar em alguma outra coisa. Depois de 41 anos de magistratura, eu me sinto realizado. Nunca imaginei, naqueles momentos de devaneio puro que todo mundo passa, nunca imaginei chegar a corregedor, presidente. Então vamos ver. De qualquer forma, para mim, eu não tenho mais nenhum cargo de direção no tribunal. No âmbito público eu posso afirmar que minha carreira se encerra aqui.

ESTADÃO: O sr. atribui o número de feitos também aos temas relacionados à pandemia?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: O tribunal foi acionado para muita matéria que não se discutia, na área de saúde, na de direito comercial. Porque a pandemia nos levou a momentos difíceis. Os empresários e comerciantes. Na área de saúde, as questões envolvendo a pandemia e os decretos do governo estadual e municipais envolvendo o 'abre e fecha'. E desde logo nós estabelecemos uma visão no sentido de que quem tem que administrar a pandemia é o Executivo. Não é o Judiciário e o Legislativo nos limites que impõe a lei. Com isso eu acredito que o Tribunal de São Paulo deu ao governador do Estado, aos prefeitos municipais, uma certa tranquilidade para que eles pudessem agir com mais sossego, sem uma liminar aqui, um ato ali. Porque a gente não tem expertise para dizer se pode ou não voltar a aula, se usa ou não a máscara.

ESTADÃO: O sr. é a favor da ciência?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Eu sou a favor da ciência. Eu acredito que nesse campo a gente tem que trabalhar nos limites da ciência, sem dúvida nenhuma, com muita responsabilidade. Salvo quando você vislumbra alguma ilegalidade manifesta. Mas não foi o caso no Estado de São Paulo. Eu acho que todos nós devemos aplaudir os Executivos estadual e municipal, que tiveram uma conduta muito reta. Tomei a terceira dose da vacina agora e tomarei tantas quantas necessárias. A gente não pode brincar, é uma coisa muito séria.

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Eu não não posso aqui afirmar, mas nós não tivemos casos de alguém pegando covid-19 dentro dos prédios do tribunal. Tivemos muitos servidores que pegaram a doença, alguns tristemente morreram, mas nós conseguimos isolar isso. A área de Comunicação toda de uma forma impecável, junto com a área de saúde. Informação de massa. Máscara, álcool em gel, as reuniões sempre isoladas. Mais recentemente baixei um ato que dizia que ninguém pode entrar nos prédios do Tribunal de Justiça, nem juiz, nem servidor, nem advogado, sem máscara e sem comprovar a vacinação. Foi o primeiro no País. A repercussão foi muito boa, inclusive dos advogados, houve até uma manifestação da Ordem  dos Advogados do Brasil aplaudindo. Eu acho que tem um ou outro que reclama, mas é normal. Mas a expressiva maioria é de acordo e está sendo assim. E com isso a gente vai, enquanto não tiver uma certeza de que esse mal foi embora. Se Deus quiser o ano que vem. Se Deus quiser já está aí.

ESTADÃO: Esses conflitos do governo federal com os governos dos Estados, especialmente em São Paulo, levaram a alguma incerteza para o tribunal na hora de definir regras?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Não, eu acho que o primeiro julgamento do Supremo Tribunal Federal, que foi relatado pelo ministro Alexandre de Moraes, foi primordial para dar tranquilidade no combate à pandemia. Aquele momento que ele disse o governo federal pode, o governo estadual pode e o governo municipal pode, nos limites da sua atuação. Então, a partir desta decisão, se espancaram inúmeras ações que iam discutir justamente isso. A partir daí as coisas se tornaram mais fáceis. Acho que essa decisão veio em hora adequada, logo no começo. E eu a julgo adequada, absolutamente correta. Colocou um norte para o combate a essas questões. Até agora ela está vigorando no sentido de evitar muitos excessos ou muitas omissões.

Acredito que você, ao chegar a um país e ter que apresentar um atestado de que você se vacinou, é algo absolutamente normal no momento que nós vivemos

ESTADÃO: A questão do momento é o passaporte da vacina para quem chega ao País.

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: De repente aparece uma demanda aqui sobre isso, mas eu acredito que nós temos - falo como cidadão - que restringir. A minha opinião, não sei se ela está certa ou se ela está equivocada. Mas eu acredito que todo o mundo, todos os países, de uma forma geral, estão restringindo. A minha filha que mora em Londres, quando voltou ano passado, ficou 14 dias dentro de casa. E o governo ligava para saber se estava dentro de casa mesmo. Então eu acredito que a restrição é necessária, não ofende direito algum. Eu acredito que você, ao chegar a um país e ter que apresentar um atestado de que você se vacinou, é algo absolutamente normal no momento que nós vivemos, ainda mais que há uma nova variante chegando aí.

ESTADÃO: Um ponto questionado por algumas entidades, principalmente as defensorias públicas de todo o País, durante a pandemia, foi a realização das audiências de custódia por videoconferência, tanto que o tema chegou ao Supremo Tribunal Federal. Como o sr. viu essa questão, considerando as alegações de que nas audiências de custódia por videoconferência haveria menos relatos de violência?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Tanto a presidência quanto a corregedoria, nós nos posicionamos muito claramente, por escrito, no sentido da realização das audiências de custódia por videoconferência. No âmbito de São Paulo, a preocupação que nós tivemos foi a de celebrar o convênio com o governo do Estado, Poder Executivo, no sentido de que essas audiências seriam realizadas em salas dentro dos presídios ou centros de detenção provisória ou até delegacias. Com câmeras com 360º, câmeras acompanhando o preso até chegar a estas salas,  ligação por telefone com o magistrado e a possibilidade de o magistrado, se tiver dúvida, ou se o advogado requerer, requisitar o preso e submetê-lo a um exame de corpo de delito para verificar se houve violência física. E pela filmagem, num primeiro momento, se espancaria a preocupação com a violência moral, de pressioná-lo a dizer A, B ou C. Então, se houvesse qualquer dúvida por parte do juiz ou por parte do advogado, o juiz imediatamente convocaria esse preso. Por que essa preocupação? Por duas razões. A primeira é porque o sistema de audiências, que é um sistema absolutamente implantado, por videoconferência tem se mostrado muito hábil. Segundo, são poucos os presos que reclamam de violência. E quando reclamam não há, pelo menos num primeiro momento, ideia de sevícia. Depois disso nós temos uma preocupação muito grande que é evitar que o preso transite indistintamente de um presídio para uma delegacia, da delegacia para o fórum, no momento de pandemia. Porque certamente ele vai trazer alguma doença. Isso vale para as audiências de custódia e as comuns. Então o preso vem de Presidente Prudente para um CDP na capital, do CDP da capital ele vai para o xadrez do fórum, no caso da Barra Funda, vai ao juiz, volta aqui, volta às vezes para outro CDP, quer dizer, se ele estiver contaminado, ele contaminou tudo. Mais ainda, uma questão humanitária, para evitar que aquele preso que vem de Presidente Prudente - falo Presidente Prudente que é uma das comarcas mais longe - eles têm que ser transportados naquele caminhão de presos, andar 600 quilômetros sob um calor terrível para uma audiência que normalmente se realiza, mas que às vezes não se realiza. Então é uma questão até humanitária. E as experiências que nós tivemos foram extraordinárias. Eu torço para que no futuro, com os devidos atos de segurança, essa questão seja resolvida definitivamente e se admita que todas as audiências possam ser feitas por videoconferência.

ESTADÃO: Uma das questões levantadas durante a pandemia, pelo Superior Tribunal de Justiça, foi sobre a Justiça de São Paulo e a manutenção de prisões preventivas. Como o sr. entende esse posicionamento?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Essa é uma matéria de discussão jurisdicional, depende de cada situação. O que eu observo, duas coisas, a gente não pode comentar uma decisão judicial, principalmente quando estou afastado há quatro anos, então eu tive conhecimento, mas não desci ao conhecimento pleno. De qualquer forma, nós temos que ter em foco duas questões. A primeira delas é que o volume de crime e a gravidade dos crimes que demandam prisão são grandes em São Paulo. Quando nós falamos em prisão, nós falamos em prisão de crimes graves, tráfico, estupro, homicídio, roubo qualificado, etc. Então quando se fala em prisão é preciso também entender que crimes dessa natureza, se nós queremos uma sociedade mais tranquila, eles devem ser tratados de forma mais dura. Isso não quer dizer que você vá praticar alguma ilegalidade. Todas as decisões têm que ser fundamentadas, justificadas, submetidas a recurso, mas é preciso que se compreenda que nós aqui em São Paulo, para a tristeza nossa, temos crimes muito sérios. De outro lado eu acho que nós não podemos deixar de prestigiar a independência do juiz no exame das questões. É ele que, a cada caso, vai entender se adota essa ou aquela posição. Isso é primordial, é um dos princípios mais importantes da jurisdição, é a independência do juiz. Quando se trata de súmula vinculante não há dúvida, aplicação é obrigatória e ninguém discute. Quando se trata de súmula não vinculante é preciso que o juiz faça um exame do fato concreto para ver se ele se adequa a essa súmula X. E daí é uma interpretação do juiz no momento de julgar. Eu estive no Estados Unidos em 1993 a convite do governo americano e tive a oportunidade de conhecer, ver essa questão constitucional, principalmente na Suprema Corte, numa conversa com advogados e promotores, e eles ponderaram que a maior dificuldade que eles têm - também é nossa, mas eles têm uma experiência muito maior, eles tratam disso, o sistema deles é diferente do nosso - é justamente fazer com que a súmula entre no fato concreto. Esta é a grande arte de julgar, quando há súmula. A súmula não vinculante ela pode e deve ser interpretada para ser aplicada, porque senão ela se torna vinculante sem ter a chancela do Supremo Tribunal Federal sobre a questão. Essa é uma questão que eu eu imagino que deva ser examinada processo a processo, com sensibilidade, com tranquilidade, sem que nenhuma parte vislumbre uma tendência de um tribunal desse porte. Eu não acredito nisso. Eu acredito em juízo independente, responsável, que busca aplicar a lei da melhor maneira, que erra, sem dúvida nenhuma, mas as outras instâncias estão aí para nos corrigir. Quando nós podemos, nós mesmos corrigimos. Eu acho que, de qualquer forma, tudo isso tem que ser tratado no processo, em cada caso per se, para a gente poder avaliar.

ESTADÃO: O que o sr. achou da PEC dos Precatórios?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Então, nós vivemos num momento difícil e, em se tratando de precatórios, uma das medidas que eu tomei foi a de digitalizar todo o cartório de precatórios. Por quê? Para agilizar o pagamento. Eu não posso conceber que o cidadão entre com ação, ganhe a ação e depois, na hora de receber, demora. Nós estamos chegando ao momento em que o pagamento vai ser muito rápido. Toda vez que se fala em estender para solucionar questões orçamentárias ou econômicas eu tenho uma restrição pessoal. Porque não é o Judiciário que causa os problemas e o ônus acaba sendo judiciário, que não paga. Não é suportável que o cidadão é que acabe com esse ônus e ver mais uma vez, por longos anos, o que lhe é devido não ser pago. Então eu tenho muita restrição. Agora sem ingressar no âmbito de uma atuação de outro poder do Estado, notadamente o poder federal, foi um estranhamento meu de fatiarem os projetos, julgar uma parte do projeto e outra não. Eu eu não compreendi bem, confesso, precisaria examinar com mais vagar essa questão. Mas eu tenho um pouco de dificuldade de entender esse fatiamento.

ESTADÃO: E o uso de recursos dos precatórios para um auxílio social?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Precisa ter uma situação muito particular. Aqui em São Paulo, em 2020, quando a pandemia estava terrivelmente séria, estava caindo a arrecadação brutalmente e o governo do Estado pleiteou a suspensão do pagamento dos precatórios. Aqui no tribunal a presidência suspendeu por seis meses esse pagamento, com a determinação de que, esgotados esses seis meses, isso foi secundado, foi aprovado pelo CNJ, houvesse o pagamento de precatórios ainda nesse exercício de 2021. Que as partes, o governo do Estado, Prefeitura, apresentassem um novo plano para pagamento em 2021. Isso está sendo feito. Então, naquele momento de absoluto desespero, em que o governo do Estado ainda não havia recebido aquele aporte do governo federal que veio posteriormente, eu entendi que era razoável por um bem maior, porque ia viabilizar o governo do Estado amparar mais gente. Agora, como regra, não tenho dúvida de que nós não podemos, para cada dificuldade, adotar essa solução de suspender pagamento de precatório. Porque nunca será pago dessa forma, porque as dificuldades sempre estarão aí. Pandemia foi algo fora da linha, fora da 'casinha'. Então eu acreditei, e depois o CNJ manteve a decisão, que naquele momento era razoável, mas com aquela restrição. E se pagasse nesse exercício a dívida toda até 31 de dezembro. Está sendo pago. E um ou outro município que não efetuar o pagamento há restrição ou imposição de intervenção, uma série de mecanismos judiciais que são usualmente adotados.

Não é suportável que o cidadão é que acabe com esse ônus e ver mais uma vez, por longos anos, o que lhe é devido não ser pago

ESTADÃO: Se olhar pelas suas janelas do tribunal, o sr. vê uma miséria absoluta no entorno. Por que chegou a esse ponto? Não é só a pandemia, né?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Pois é, eu talvez não saiba definir por que chegou a esse ponto. Acho que até comparando com outros países, tem gente que diz que o Brasil é um país pobre, mas é um país pobre em termos, porque tem muitos meios, muitas possibilidades. Eu acredito que não houve uma preocupação de solucionar uma questão social que é difícil e talvez nunca seja possível solucionar, mas é preciso que se tenha desejo. Eu vejo algumas ações do governo do Estado de São Paulo, da Prefeitura, muito positivas. Cito as duas porque com quem eu convivo mais diariamente, tenho mais proximidade, apenas por isso. Mas demanda uma atuação que vai muito além dos quatro anos de mandato. Isso é uma coisa, é um projeto que tem que ser para sempre, uma preocupação todo dia. Isso que nós vemos na Praça da Sé, eu digo, é uma tristeza sem dúvida nenhuma, mas é algo que vai muito além do dever só do poder público, invade o dever do cidadão, da sociedade civil. É uma coisa complexa, eu não saberia definir. Tem a desestruturação familiar. O prefeito municipal, numa reunião, eu perguntei para ele 'e como fazer isso?' Por isso que eu digo que a sociedade civil tem que ajudar. Bom, nós temos todos os locais para abrigar essas pessoas, inclusive o governo do Estado tem o local para abrigar os cachorros desses cidadãos de rua. Mas o primeiro passo que se dá para tentar levá-los já é um turbilhão social, na sociedade contra, alegação de restrição de direitos, limitação de possibilidade de exercer sua autonomia. A Cracolândia, por exemplo. Eu acredito fielmente que era preciso uma ação com muita responsabilidade, com muita atenção, mas era preciso ter uma ação. Eu acredito que é preciso uma legislação clara no sentido de que, se um cidadão está absolutamente abandonado, levado ao vício ao extremo, é preciso que o que o poder público tenha autorização da lei para pegar esse cidadão, no bom sentido, e levá-lo para uma internação obrigatória. Eu acredito nisso, porque é uma forma de você auxiliar. Você simplesmente dizer 'mas eu também não posso mexer', você vai falar 'é uma utopia?'. Talvez seja, mas eu acredito que é preciso que nós tenhamos nesses campos legislações mais firmes que permitam que o Estado, o município, efetivamente possa cuidar das pessoas. Porque se ele vai próximo, se ele vai tentar auxiliá-los e a própria sociedade vem atrás dizendo que não é possível, que isso é uma violação de direitos, eu acho que então nós estamos em um imbróglio muito grande que a solução será nenhuma em todo momento. Essa é a visão de um cidadão, não de um juiz.

ESTADÃO: Nesses dois anos, houve algum momento mais difícil que o sr. pensou 'a casa caiu'?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Acho que o dia mais difícil foi quando nós decidimos fechar o tribunal. Nunca aconteceu isso. De vez em quando a gente fecha um fórum, um tribunal em certas situações. Na primeira semana que eu assumi aqui teve uma enchente brutal em São Paulo. E aí eu precisei fechar quase todos os fóruns e esse tribunal. Janeiro de 2020, três meses antes da pandemia. Então teve uma enchente. Ninguém chegava. Eu falei 'deixa as pessoas em casa' e eu achei que era o máximo que eu ia fazer. Já foi uma preocupação. Depois teve no litoral também um problema de inundação. Depois, quando passa, que a gente consegue enxergar melhor as coisas. Mas no momento que nós decidimos, e com o apoio do Conselho Superior da Magistratura, que nós íamos fechar todo o Judiciário, ali foi um momento de impacto.

ESTADÃO: O sr. esperava alguma reação contra essa medida?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Chegou a haver, não naquele momento. Posteriormente alguns entendiam que era possível voltar e a gente está voltando aos poucos. Mas nesse momento a união foi total. Houve uma união dos juízes, dos servidores. Eu mesmo imaginei que aquele ato era para dois meses. Nós fechamos até agosto, daí abrimos quando começou a melhorar, fechamos em outubro ou novembro, mais um ou dois meses, depois abrimos de novo em dezembro. Nós fomos nos adaptando. Acompanhamos o plano São Paulo porque era o plano técnico, de ciência, que nos dava um norte, porque nós não temos conhecimento. Juntamente com nosso departamento de saúde da doutora Daniele, que nos orientou.

ESTADÃO: Há uma proposta de derrubada da sanção máxima da Lei Orgânica da Magistratura (Loman), de aposentadoria compulsória, o que o sr. acha?

DESEMBARGADOR GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO: Na minha opinião, a lei orgânica precisaria ser mudada quanto às sanções. Sem dúvida nenhuma. Eu acho que teria que ter uma sanção, por exemplo, de suspensão. Eu acho até que aquele trecho da lei orgânica tem alguma coisa de inconstitucional - qual é a diferença de um mesmo ato praticado por um juiz de primeiro grau que pode receber advertência, pode receber censura, e o juiz de segundo grau não pode? Quer dizer, o risco é muito grande. Então você apena um juiz de primeiro grau com censura e pelo mesmo fato você não pode apenar, porque tem vedação expressa na lei orgânica, um desembargador por censura. Aí de duas uma: ou você coloca ele em disponibilidade ou aposentadoria compulsória e há o risco de ser desproporcional a sanção. E daí você não apena com nada. Então eu acho que a lei orgânica precisa repensar. Agora, aposentadoria compulsória eu confesso para você que ela deveria ser excluída da Loman. Quando eu precisei me valer desta sanção não é alguma coisa que eu via prazerosamente no sentido de aplicação adequada de uma sanção. Quando há fatos graves, às vezes com conotações penais, o que nós temos feito no tribunal é encaminhar peças para o Ministério Público. Eu tenho muitas restrições à aposentadoria compulsória.

Inclusive é difícil de você explicar para o cidadão que o sujeito foi apenado gravemente, porque é uma das sanções mais sérias da lei orgânica, e vai ser aposentado, vai receber. Lógico que o cidadão não sabe que vai haver uma ação, voltada a cassar aposentadoria e exonerá-lo do cargo de juiz. O cidadão também não sabe que é uma das sanções que foram eleitas por uma lei complementar à Constituição. Então eu concordo com o cidadão, eu não me sinto à vontade de aplicar. Tanto que num julgamento recente envolvendo um desembargador eu propus a pena de disponibilidade porque é mais razoável do que você aplicar a aposentadoria. Eu acho que precisaria haver uma mudança séria das previsões da lei orgânica quanto a matéria disciplinar. Não tenho dúvida nenhuma. A Ministério Público é diferente. Tem multa, afastamento. Acho que deveria constar na nossa também, multa. Para os servidores do extrajudicial você aplica multas elevadas, dependendo do caso. Para os servidores nossos também, multa. Converte em 50% dos vencimentos. Então eu acredito que poderia ser revista. Agora, enquanto não houver revisão, e a iniciativa é do Supremo Tribunal Federal, nós temos que aplicar de acordo com o entendimento de cada um.

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