Tive uma sensação de morte e deparei-me com um ambiente estranho; não era o limbo, tampouco o inferno de Dante ou o paraíso. Disseram-me que seria julgado. Pensei: por que não me banhei nas águas do Ganges, quando estive em Varanasi? Quiçá meus pecados fossem remidos e assim seria poupado desse périplo. Os guardas me carregavam energicamente. Um deles era terrível...
Não sei explicar e detalhar bem aquela atmosfera, mas se cuidava de um julgamento. E, para adentrar a corte, o guarda bateu 3 vezes na porta. Após ele fornecer a senha exigida, o juiz autorizou o ingresso. Fui conduzido sob uma espada flamejante como aquela do Gênesis (3:24). Eu não enxergava nada.
O magistrado era severo, onisciente e, como corolário, conhecia tudo da minha vida. Era implacável! E confundia-se com um acusador. Era um juiz mimético: a um só tempo era arconte e acusador.
Por mais estratégias de defesa que eu esboçasse e esgrimisse, por maior que fosse a destreza nas minhas palavras e na eloquência, ele conhecia todas e as repelia liminarmente. Sabia de antemão cada átimo, cada suspiro, cada engano e cada dolo que eu perpetrara. A prova defensiva era inócua. O devido processo legal inexistia, tal como eu o depreendera dos códigos. Eu aspirava à prescrição! Ou almejava uma nulidade...
Afinal, o juiz era inquisidor, era também o Ministério Público neste estranho e perene sinédrio. E quando juiz e acusação atuam em conluio, de forma adrede, sequer o próprio Deus conseguiria escapar. Esse conúbio era inadmissível! Todavia os meus argumentos não convenciam.
Depois de eu tanto argumentar, pedi-lhe água. Um querubim trouxe-ma. Ao ingeri-la, o gosto extremamente amargo do líquido irritou a minha garganta; tossi bastante. Mal consegui engolir aquilo. Espantei-me! O julgador sorriu ao notar o meu semblante. Era uma espécie de transubstanciação: meus delitos transfigurados em fel. E, pelo jeito, eram muitos.
O supremo magistrado exortara-me de que eu seria castigado severamente! Redarguí-lhe indagando o porquê da censura. E gizei a suspeição, a parcialidade dele, em vão, pois isso também fora rechaçado de chofre. Respondeu-me o julgador:
- Condeno-te pelas inúmeras vezes nas quais me renegaste.
Condeno-te porque me vilipendiaste.
Condeno-te porquanto não seguiste os meus princípios.
E tu os conhecia sobejamente!
Condeno-te porque foste indiferente aos meus sinais.
Enfim, condeno-te pelo que és, por aquilo em que te transformaste.
Pus-me no genuflexório por clemência.
E perguntei:
-Que sinais eram esses?
Nunca os notei.
E a resposta veio inopinadamente:
- Tua intuição!
Fez-se silêncio no areópago.
Solicitei o nome do juiz para rogar-lhe o derradeiro perdão.
- Sou a tua consciência!
Desisti imediatamente do pleito.
Selaram-se definitivamente os meus lábios,
findaram-se as minhas réplicas.
Sentenciado estava: eu me condeno!
*João Linhares, promotor de Justiça do Ministério Público de MS. Mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona - Espanha. Especialista em Controle de Constitucionalidade e Direitos Fundamentais pela PUC-RJ. Integrante da Academia Maçônica de Letras de MS. Professor (docente externo) no curso de pós-graduação lato sensu em Segurança Pública e Fronteiras da Universidade Estadual de MS - UEMS