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Estupro e a dúvida razoável

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Por Fernando Parente
Atualização:
Fernando Parente. Foto: Divulgação

A Lei nº 12.015, de 2009, promoveu alterações no Código Penal brasileiro e unificou os crimes de estupro e atentado violento ao pudor em um único crime, com penas que podem chegar a 10 anos de reclusão, ou a 14 se a vítima for menor de idade. Mas um grande problema e ainda tabu na sociedade atual é reconhecer que a verdadeira vítima pode ser a pessoa acusada injustamente de cometer um crime tão repugnante.

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Atualmente, o estupro é classificado além da cópula pênis e vagina, que também pode ser entendida como a relação sexual propriamente dita. Ele pode ser definido de diversas formas, contanto que a vítima se sinta prejudicada. Qualquer tipo de ato sexual, como o sexo anal, sexo oral, beijo sem concordância e até a passada de mão sem anuência da outra pessoa, são abarcadas como estupro. Já o abuso sexual é um termo popular para dizermos que uma pessoa foi violentada sexualmente. Mas, no ponto de vista técnico, o uso do termo não é apropriado.

A novidade trazida pela legislação é quanto à vítima do crime. Antigamente, só a mulher era estuprada. Hoje, o homem também pode ser estuprado no ponto de vista jurídico. No ponto de vista fático sempre pôde, mas juridicamente isso não era reconhecido.

Um dos aspectos mais intrigantes com relação ao tema e que podem abarcar erros no processo é o peso da palavra da vítima em caso de denúncia sobre um suposto estupro, principalmente quando a alegada vítima é menor de idade. A jurisprudência brasileira dá um forte valor à palavra da vítima, sob o argumento de que esses crimes, em regra, acontecem na clandestinidade.

Esse entendimento pode ignorar a possível verdade. A consideração apenas da palavra da vítima vem de tempos passados, nos quais não havia qualquer outro meio que pudesse realmente ajudar a corroborar essa denúncia. Atualmente há diversos outros elementos que ajudam nessa averiguação.

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A tecnologia é um desses meios. As câmeras transmitem como as pessoas chegam em determinados locais. O celular revela onde e por quanto tempo uma pessoa esteve em determinada região. Há diversos outros meios de levantar e apurar tais fatos. Além disso, a psicologia do testemunho, que  é um conjunto de conhecimentos e investigações que busca garantir a qualidade dos relatos contados pelas testemunhas, pode ser usada como uma grande ferramenta. Mas o judiciário brasileiro ignora.

Existe a discussão de que a palavra da vítima precisa encontrar reflexo em outros elementos do inquérito do processo, mas, via de regra, esses elementos são apenas do próprio depoimento da vítima.  A testemunha do caso, por exemplo, para a qual a vítima narrou o fato, geralmente não está presente no acontecimento. Este é mais um momento em que a palavra da vítima é potencializada.

Quando existe dúvida razoável sobre a prática do delito, é imprescindível que ocorra uma investigação sobre o caso.  Existem situações em que a vítima narra uma ocorrência de violência sexual, mas ao buscar e apurar a verdade é possível que toda a situação tenha sido um desentendimento de casal, e como retaliação, um dos dois, geralmente, a mulher, vai à polícia denunciar que teria sido violentada. Há outras situações também em que realmente não fica claro se houve ou se deixou de haver um estupro.

Em recente decisão, após sessão realizada por videoconferência, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal absolveu um réu por haver dúvida sobre a ocorrência do crime de estupro de vulnerável. Os ministros entenderam que existia dúvida razoável sobre a prática do delito e, por isso, o réu não pode ser considerado culpado.

O homem foi denunciado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo pela suposta prática de atos libidinosos contra uma adolescente de 15 anos com deficiência mental, o que teria ocorrido na clínica psicológica da esposa dele. O homem acabou condenado pela justiça de São Paulo a 12 anos de reclusão em regime fechado pelo crime de estupro de vulnerável. A decisão chegou a ser mantida pelo Superior Tribunal de Justiça. Mas os advogados alegavam atipicidade da conduta e pediam a reforma da condenação, por não haver provas da prática do crime. Também questionavam a incapacidade ou a deficiência mental da vítima, conforme laudos médicos oficiais emitidos.

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Durante a análise do caso, o ministro Alexandre de Moraes votou pela concessão do habeas corpus pedido pela defesa, pois, segundo ele, o Estado tem a obrigação de comprovar a culpa do indivíduo, sem que permaneça qualquer dúvida, para afastar a presunção de inocência prevista na Constituição Federal. Em seguida, o relator, ministro Marco Aurélio, retificou seu voto e se manifestou pela concessão do HC com fundamento no inciso VII do artigo 386 do Código de Processo Penal, que prevê a absolvição do réu quando não existir prova suficiente para a condenação. O relator foi acompanhado por unanimidade, ao entender que o caso apresentou dúvida razoável.

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A situação de existência da dúvida acima do razoável é elemento indispensável para a condenação. Por isso, o princípio constitucional da presunção da inocência é aplicado como limite do poder punitivo do Estado e em benefício do acusado. É extremamente sério o crime de estupro, mas também é de grande importância a não criminalização de alguém por algo que não ocorreu. A condenação de uma pessoa por crime de tamanha repugnância, quando injusta, abala por inteiro a vida do homem e de todos que o cercam.

Sendo comprovada uma denúncia caluniosa, o denunciante pode ser responsabilizado. Se a pessoa vai até a delegacia e faz uma acusação falsa afirmando que foi estuprada, sabendo que isso é falso, esse acontecimento é considerado denunciação caluniosa. Mas o que ocorre, na prática, é a não responsabilização penal desses casos.

Por fim, o peso da palavra vítima, ainda utilizada sob a lógica de raciocínio do passado, acaba levando a um abuso, a um excesso de acusações falsas, temerárias, vingativas, e de retaliação para prejudicar por qualquer razão a outra pessoa e desprotegendo as verdadeiras vítimas. Então, quando há dúvida razoável em favor do investigado, a regra é que se arquive o inquérito e se julgue improcedente o processo penal. Mas, na sociedade atual, cabe à defesa do acusado injustamente fazer um excelente trabalho para comprovar sua inocência perante a acusação de suposta vítima.

*Fernando Parente é advogado criminalista sócio do Guimarães Parente Advogados.

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