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Estelionato e furto de energia elétrica

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Por Rogério Tadeu Romano
Atualização:
FOTO: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO  

I - "O GATO"

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Informações da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) dão conta de que, em 2020, as perdas não técnicas, ou seja, as que consideram furtos, fraudes, erros de leitura e medição, corresponderam a 7,5% (37,9 TWh) da energia elétrica injetada no Brasil.

Como alertou Celso Ming, em sua coluna para o Estadão, em 21 de agosto de 2021, esses gatos não acontecem apenas em áreas residenciais. Estendem-se para estabelecimentos comerciais e oficinas mecânicas, condomínios e até mesmo certas unidades de produção industrial, como serrarias e fábricas de esquadrias metálicas.

No mercado de baixa tensão, onde mais ocorrem, esses gatos, em 2020, alcançaram 16,3% da energia injetada, volume 1% mais alto em comparação com o registrado no ano anterior.

Tudo isso impressiona, pois como disse Celso Ming, naquela oportunidade, em 2020, o impacto dessas perdas reais sobre as tarifas de energia elétrica foi avaliado em R$ 8,5 bilhões. Desse total, o repasse para a conta do consumidor foi de R$ 5,6 bilhões, o que representa 2,9% do valor da tarifa. Ou seja, as concessionárias tiveram de assumir um prejuízo de R$ 2,9 bilhões em 2020 apenas com perdas não reconhecidas.

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E ainda concluiu:

"Mas o impacto na tarifa chega a ser dramático em algumas localidades. No Estado do Amazonas, por exemplo, o custo das perdas com furtos e roubos corresponde a cerca de 18,9% do valor da tarifa cobrada do consumidor. No Amapá, 13,3%; Roraima, 8,5%; Pará, 7,4; e no Rio de Janeiro, o repasse dessas perdas em 2020 foi de 10% para os consumidores da Light e de 4,4% para os da Enel RJ."

II - AREsp 1.418.119.

Pois bem.

Noticiou-se no site do Superior Tribunal de Justiça, em data de 13 de junho de 2019, que a conduta de alterar o medidor de energia para que não marque corretamente o consumo caracteriza o crime de estelionato. A Quinta Turma STJ rejeitou um recurso em que a defesa dos réus sustentava a atipicidade da conduta ao argumento de que esse crime exigiria a indução de uma pessoa a erro, conforme descrito no artigo 171 do Código Penal - o que não teria ocorrido no caso.

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De acordo com o Ministério Público do Distrito Federal (MPDF), duas pessoas alteraram o medidor de energia de um hotel, colocando uma espécie de gel no equipamento para que ele marcasse menos do que o consumo verdadeiro de energia. O MPDF denunciou ambos pelo crime de estelionato.

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Os réus foram condenados e tiveram a pena de reclusão substituída por penas restritivas de direitos. Ao manter a condenação, o TJDFT destacou que a conduta tinha "elementos típicos" do estelionato, justificando a aplicação do artigo 171 do CP.

O ministro Joel Ilan Paciornik, relator do recurso da defesa no STJ, alertou que o caso é diferente dos processos que envolvem a figura do "gato", em que há subtração e inversão da posse do bem (energia elétrica) a partir da instalação de pontos clandestinos.

"Estamos a falar em serviço lícito, prestado de forma regular e com contraprestação pecuniária, em que a medição da energia elétrica é alterada, como forma de burla ao sistema de controle de consumo - fraude - por induzimento em erro da companhia de eletricidade, que mais se adequa à figura descrita no tipo elencado no artigo 171 do Código Penal (estelionato)", justificou o relator.

O entendimento se deu no AREsp 1.418.119.

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III - O ESTELIONATO

O artigo 171 do Código Penal traz a hipótese de crime material assim descrito: "Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento."

Por outro lado, nos casos de estelionato cometido contra a instituição pública, há o que chamamos estelionato qualificado, com previsão de causa de aumento de pena de 1/3 (artigo 171, § 3º, do Código Penal).

Para que o estelionato se configure, é mister: a) o emprego pelo agente de artifício ou ardil ou qualquer outro meio fraudulento; b) induzimento ou manutenção da vítima em erro; c) obtenção de vantagem patrimonial ilícita pelo agente; d) prejuízo do enganado ou de terceira pessoa.

Deverá ocorrer uma vantagem ilícita e prejuízo alheio relacionado com a fraude onde alguém agiu mediante ardil, artifício, que levou a erro à vítima. O elemento subjetivo do crime é o dolo.

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Trata-se de crime material consumando-se no tempo e no local em que o agente obtém a vantagem ilícita, admitindo a tentativa.

IV - O FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA

Diverso é o crime de furto de energia elétrica.

Desviando o agente, de forma indevida, a energia elétrica cometerá o crime de furto, podendo praticar estelionato se induz a vítima em erro, usando qualquer artefato, como é o caso de viciar o relógio de marcação de consumo, por exemplo. O furto de eletricidade, por meio de extensão clandestina, é crime permanente e não continuado. Porém, já se decidiu que atua em estado de necessidade o agente que, tendo suspenso o fornecimento de energia elétrica por não ter condições para pagar a conta, faz ligação clandestina(TACrSP, Ap. 1.201, j. 17.08.00, in Bol.IBCCr 100/524).

"No furto qualificado com fraude, o agente subtrai a coisa com discordância expressa ou presumida da vítima, sendo a fraude meio para retirar a res da esfera de vigilância da vítima, enquanto no estelionato o autor obtém o bem através de transferência empreendida pelo próprio ofendido por ter sido induzido em erro". (AgRg no REsp 1279802/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 8/5/2012, DJe 15/5/2012).

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Bem disse Guilherme de Souza Nucci(Código penal comentado, 8ª edição, pág. 715) que quem faz uma ligação clandestina, evitando o medidor de energia elétrica está praticando o crime de furto.

No furto de energia há o que se popularmente chama de "gato".

O ministro Paciornik apontou estudos doutrinários sobre a distinção dos crimes de furto e estelionato. Ele explicou que, no caso do furto, caracterizado pela inversão de posse, a fraude visa a diminuir a vigilância da vítima e possibilitar a subtração do bem.

"Por sua vez, no estelionato, a fraude objetiva fazer com que a vítima incida em erro e voluntariamente entregue o objeto ao agente criminoso, baseada em uma falsa percepção da realidade", explicou o ministro ao defender que esse tipo penal melhor se adequa à situação analisada.

É certo que há precedente firmado nos autos do RHC n. 62437/SC, em 2016, em que o Ministro Nefi Cordeiro, fazendo referência ao julgado citado acima, consigna que a subtração de energia por alteração de medidor sem o conhecimento da concessionária, melhor se amolda ao delito de furto mediante fraude e não ao de estelionato.

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Há precedente firmado, nos autos do HC n. 67.829/SP, em que o Ministro Arnaldo Esteves Lima elucidou a questão dizendo que "Configura o delito de estelionato a adulteração no medidor de energia elétrica, de modo a registrar menos consumo do que o real, fraudando a empresa fornecedora." (QUINTA TURMA, DJ de 10/9/2007, p. 260).

No conflito de competência de n. 86.862/GO, de relatoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, julgado em 08/08/2007, restou estabelecido em sua ementa que "embora esteja presente tanto no crime de estelionato, quanto no de furto qualificado, a fraude atua de maneira diversa em cada qual. No primeiro caso, é utilizada para induzir a vítima ao erro, de modo que ela própria entrega seu patrimônio ao agente. A seu turno, no furto, a fraude visa burlar a vigilância da vítima, que, em razão dela, não percebe que a coisa lhe está sendo subtraída."

No mesmo sentido, o AgRg em CC n. 74.225/SP, de relatoria da Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG).

Sobre o furto de energia trouxe o julgamento trazido à colação a seguinte doutrina:

Fernando Capez aduz o seguinte: Furto de energia: O legislador equiparou à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico. Haverá furto na captação da energia antes de sua passagem pelo aparelho medidor. A alteração do aparelho medidor poderá configurar a fraude do crime de estelionato. (Código Penal comentado - 7. ed. - São Paulo: Saraiva, 2016).

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Por sua vez tem-se a lição de Guilherme de Souza Nucci:

O cerne da questão diz respeito ao modo de atuação da vítima, diante do engodo programado pelo agente. Se este consegue convencer o ofendido, fazendo-o incidir em erro, a entregar, voluntariamente, o que lhe pertence, trata-se de estelionato; porém, se o autor, em razão do quadro enganoso, ludibria a vigilância da vítima, retirando-lhe o bem, trata-se de furto com fraude.

No estelionato, a vítima entrega o bem ao agente, acreditando faze o melhor para si; no furto com fraude, o ofendido não dispõe de seu bem, podendo até entregá-lo, momentaneamente, ao autor do delito, mas pensando em tê-lo de volta. (...) Embora esteja presente tanto no crime de estelionato quanto no de furto qualificado, a fraude atua de maneira diversa em cada qual. No primeiro caso, é utilizada para induzir a vítima ao erro, de modo que ela própria entrega seu patrimônio ao agente. Por seu turno, no furto, a fraude visa burlar a vigilância da vítima, que, em razão dela, não percebe que a coisa lhe está sendo subtraída. (Código Penal comentado, - 17. ed. rev. atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 960/961).

O julgamento, no AREsp 1.418.119, traz em síntese:

No furto, a fraude visa a diminuir a vigilância da vítima e possibilitar a subtração da res (inversão da posse). O bem é retirado sem que a vítima perceba que está sendo despojada de sua posse. Por sua vez, no estelionato, a fraude objetiva fazer com que a vítima incida em erro e voluntariamente entregue o objeto ao agente criminoso, baseada em uma falsa percepção da realidade.

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*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado

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