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Estamos em estado de emergência?

Por Júlio Marcelo de Oliveira
Atualização:
Júlio Marcelo de Oliveira. FOTO: MPD/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O Congresso Nacional acaba de aprovar a Emenda 123/22 à Constituição Federal estabelecendo uma série de benefícios sociais que terão vigor durante este ano. Para "viabilizar" os gastos adicionais e "compatibilizá-los" com a regra fiscal do teto de gastos, a própria emenda declara que estamos em estado de emergência, que estaria caracterizado pela "elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais dela decorrentes".

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Será mesmo que a elevação verificada nos preços dos combustíveis caracteriza um estado de emergência? Não está esse aumento em linha com a política de paridade de preços internacionais adotada já há alguns anos e, portanto, plenamente previsível. Será esse um procedimento juridicamente aceitável?

Quando o texto original da Constituição previu o estado de emergência nacional como autorizador da não observância de certas regras fiscais ele estava se referindo a estados reais de emergência ou ele admitiria também estados ficcionais ou discricionários de emergência? Basta uma norma, ainda que tenha a estatura de uma emenda à Constituição, declarar que estamos em estado de emergência para ativar o regramento jurídico do estado de emergência ou é preciso mais que isso, é preciso também que essa declaração tenha respaldo na realidade? Será suficiente o atendimento meramente formal do requisito do estado de emergência ou esse atendimento tem de ser também material?

No universo do Direito, costuma-se ouvir que o papel aceita tudo. Com isso, uns pretendem justificar a mais ampla liberdade ao legislador para redigir as leis, já outros criticam essa liberdade absoluta, lembrando, com razão, que a realidade e a própria natureza das coisas não podem ser negadas ou deformadas pelo jogo de palavras ou pelo mau uso delas.

Não se trata aqui de negar o valor da ficção jurídica, técnica para resolução de problemas práticos da vida humana. A pessoa jurídica, por exemplo, é uma ficção extremamente útil que serve para apartar os direitos e deveres de pessoas físicas que se associam para determinada finalidade daqueles que elas têm em sua vida individual. Essa técnica não conflita com a realidade. Ao contrário, vem equacionar um problema prático da realidade, tanto que, se for usada maliciosamente como mecanismo para fraudar credores ou consumidores, a pessoa jurídica pode ser afastada para que se atinja o patrimônio dos sócios que a constituem.

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A confissão ficta é outro exemplo de técnica jurídica utilizada para a resolução de conflitos pela via processual. A parte que não contesta por sua livre vontade aquilo que lhe é imputado dá ensejo à conclusão de que o confessa tacitamente. Presume-se assim para que o processo possa ter prosseguimento e conclusão. É uma necessidade da vida que se resolve, mesmo assim, isso não se dá de forma automática em todos os casos. Não ocorre confissão ficta quando os fatos alegados pelo autor são contrários às provas dos autos, isto é, a realidade concreta e palpável prevalece sobre a ficção.

Veja-se ainda o caso da definição do salário mínimo na Constituição Federal. Segundo seu artigo 7º, inciso IV, o salário mínimo deve ser fixado em valor capaz de suprir as necessidade vitais básicas do trabalhador e às de sua família com "moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social". O salário mínimo no Brasil nunca foi capaz de atender satisfatoriamente a todas essas necessidades. Por mais nobre que possa ser a intenção do legislador, seu descasamento da realidade econômica e social do país esvazia a eficácia dessa norma constitucional. Normas programáticas já não fazem sentido no Direito Constitucional moderno. A Constituição não pode ser uma carta de boas intenções.

O salário mínimo é uma variável econômica de complexa fixação, que carece ser calibrado de modo a garantir uma renda mínima ao trabalhador sem se converter ele mesmo em obstáculo a que o trabalhador pouco qualificado possa conseguir um emprego. Em outras palavras, se o salário mínimo for muito baixo, ele não garante absolutamente nada ao trabalhador, e se for muito alto, como seria em princípio desejável, produz desemprego, porque empresas evitarão ao máximo contratar, dado o custo envolvido. Se o Congresso Nacional estabelecesse hoje um salário mínimo de valor duas ou três vezes superior ao atual, certamente milhares de trabalhadores perderiam seu emprego e muitas pequenas empresas, dependentes de mão de obra, encerrariam suas atividades. Trata-se, portanto, de uma variável econômica que precisa estar alinhada com a realidade, que não pode ter seu valor fixado por mero ato de vontade.

Por ora, pode-se dizer que a norma constitucional do salário mínimo dorme em berço esplêndido. O risco que corremos com sua previsão na Constituição, na forma em que está, é em algum momento o Poder Judiciário, com o ativismo que o tem caracterizado mais recentemente, atribuir a si mesmo legitimidade para fixar seu valor. É bom que as decisões de política econômica sejam adotadas por quem tem legitimidade política para tanto, até porque os titulares de mandato eletivo, governantes ou parlamentares, estão mais sujeitos aos influxos da realidade econômica e social do que os membros do Poder Judiciário.

No universo das prestações de contas, também se diz, muito jocosamente, que o papel aceita tudo. Daí a necessidade de se auditar justamente para conferir com a realidade o que nelas se afirma. Mais uma vez, a realidade é que importa.

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Também se diz que o Direito é feito pelo homem para o homem. Trata-se de importante diretriz interpretativa para adequada aplicação do Direito à realidade. Ela nos lembra que o texto da norma jurídica não deve ser tido como imutável e inflexível como as leis da natureza, mas como instrumento criado pelo homem para regular a vida das pessoas e, por isso mesmo, deve ser interpretado de modo que em sua aplicação estejam presentes a finalidade para a qual a norma foi editada e a realidade sobre a qual ela incidirá.  Esse é o sentido dessa diretriz. Ela não autoriza desconsiderar a natureza das coisas, pois isso seria esvaziar de sentido as palavras e os conceitos, material de que é feito o próprio Direito. Em sentido oposto, ela conclama a que se leve em conta a realidade das coisas para uma aplicação correta do Direito.

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Volta-se à indagação inicial: estamos diante de um quadro de emergência real? Ou o legislador criou uma emergência ficta para pretender justificar despesas que não poderia realizar, dado o regramento constitucional em vigor que estabelece um teto de gastos corrigido pela inflação? Tratar o aumento dos combustíveis como situação apta a configurar um estado de emergência não condiz com a realidade, não só porque esse aumento é plenamente previsível, mas também porque outra alteração constitucional, que limitou o ICMS incidente sobre esses produtos, produziu boa redução de seus preços, da ordem de 25% do valor final pago pelo consumidor. Nossa emergência, portanto, é pura ficção legislativa.

O que se afigura como motivação real para a EC 123/22 parece ser o calendário eleitoral. Teremos gastos extraordinários e vultosos justamente durante o período eleitoral, algo apto a causar uma efêmera sensação de melhoria nas condições de vida de parte importante do eleitorado. Esse filme já foi visto antes, só que com violação direta das normas em vigor. Desta feita, buscou-se um arcabouço jurídico formal para o mesmo desiderato. Será o formalismo suficiente? Qual será a realidade a partir de janeiro, após as eleições? Nada leva a crer que os combustíveis estarão mais baratos ou que a realidade social brasileira estará substancialmente modificada. Não haverá mais emergência? Ou teremos emergência contínua? Ou ainda, emergências sazonais, coincidentes com as eleições no país?

Caberá ao Supremo Tribunal Federal julgar as ADIs já propostas contra essa emenda constitucional, ocasião em que decidirá se podemos viver apenas de ficções jurídicas contrárias à realidade ou se ela deve prevalecer para ser tratada com seriedade e transformada com planejamento e muito trabalho.

*Júlio Marcelo de Oliveira, procurador de contas junto ao TCU e membro da diretoria do Movimento do Ministério Público Democrático

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Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Acesse aqui todos os artigos, que têm publicação periódica

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