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Espírito esportivo no mercado

Concorrência e cooperação em tempos de crise

Por Eric Hadmann Jasper
Atualização:

Eric Hadmann Jasper. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Mário Filho, certa vez, escreveu sobre Mané Garrincha: "Naquele instante, Garrincha era um Gandhi do futebol, florescendo subitamente em meio ao incêndio das paixões de um jogo."[1] O jornalista que dá nome ao maior estádio de futebol do mundo se referia a uma jogada durante o clássico entre Fluminense e Botafogo de 27.3.1960.

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Relatos da época indicam que no decorrer do segundo tempo o zagueiro do Fluminense, Pinheiro, disputou a bola com o atacante Quarentinha e caiu sentindo dores musculares. A bola, naturalmente, procurou Garrincha que, livre para marcar o gol, optou por chutar para a lateral e permitir o atendimento médico do oponente. Sem que qualquer palavra tivesse sido trocada, o tricolor Altair cobrou o lateral na direção da equipe botafoguense, devolvendo a posse da bola à equipe adversária. A atitude resultou em aplausos dos torcedores de ambas as equipes. Nesse momento, dizem, nasceu o fair play no futebol mundial.

O esporte e, em especial, o espírito esportivo podem ser pontos de partida interessantes para uma reflexão sobre o delicado momento atual, em particular quanto à dinâmica competitiva dos mercados.

Sociedades praticam esportes pelas mais diversas razões. Divertimento, ritual religioso, política, preparação para guerra, forma de reduzir tensões sociais e evitar conflitos. A visão dos gregos antigos me parece mais agradável. Eles entendiam a prática como uma arena de cultivo da excelência humana (aretê), uma vez que era esperado do cidadão grego o desenvolvimento do intelecto, mas também do corpo.[2]

Mas para que seja possível distinguir uma façanha primorosa é necessário criar regras do jogo. Número máximo de jogadores, quais partes do corpo podem ou não tocar a bola, quando um gol é válido, limite de tempo. Todas as regras são desenhadas para impor restrições e, ao mesmo tempo, permitir que a engenhosidade humana se destaque.

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O mercado não é muito diferente. Ele é a arena social onde ocorrem trocas voluntárias de bens e serviços entre indivíduos e empresas. Nesse espaço competem produtores em busca do maior lucro possível e consumidores, que desejam produtos e serviços pelo menor preço, pouco importa se abaixo do custo. Além disso, produtores e consumidores também competem entre si, disputando, respectivamente, os próprios consumidores e os produtos ofertados. Essa competição, da mesma forma dos esportes, eleva e destaca a engenhosidade e excelência humana, colocando ativos nas mãos daqueles que mais os valorizam e, portanto, resultando em ganho de bem-estar social.

Para que seja possível observar ganho de bem-estar social, também são necessárias regras. Das mais básicas, como proteção da propriedade privada e respeito aos contratos, até as mais complexas encontradas no direito regulatório e concorrencial. Um cuidado especial deve ser dedicado ao árbitro do mercado. Apesar de a presença do Estado ser essencial para garantir aderência às regras do jogo e corrigir eventuais falhas, por vezes, ele é árbitro e jogador simultaneamente.

Em razão da importância das regras, quaisquer mudanças devem ser profundamente refletidas e seus custos e benefícios avaliados. Alterações bruscas e impensadas podem ter efeitos extremamente danosos. Apenas para citar alguns exemplos, recentemente, em vista da crise do novo coronavírus, membros do Congresso Nacional propuseram (i) o PL n. 1.610/2020, que veda a elevação de preço de alimentos da cesta básica durante estado de calamidade pública por meio de alterações no Código de Defesa do Consumidor e na Lei de Defesa da Concorrência; (ii) o PL 1.453/2020, que estabelece que o poder público poderá definir limites de preços para bens essenciais ao enfrentamento da situação emergencial, desde que considere o aumento de custos em toda a cadeia de suprimentos e o ajuste natural entre oferta e demanda; (iii) o PL 768/2020, que propõe criminalizar a elevação de preços sem justa causa, em períodos como a pandemia do coronavírus por meio de alteração no Código de Defesa do Consumidor (projeto similar ao contido no PL 774/2020, mas com alteração na Lei n. 8.137/1990); e (iv) o PL 1179/2020 que, entre outros, busca suspender trechos da Lei de Defesa da Concorrência durante o período de crise, mas poderá resultar em maior insegurança jurídica que o esperado.

Apesar das louváveis intenções, as iniciativas acima, em maior ou menor grau, terão o destino de toda política pública de controle de preços: prejuízos para produtores e consumidores, escassez e mercado negro.

Isso sem falar na atuação de alguns Procons que estimulam consumidores a denunciarem "preços abusivos" e aplicam punições administrativas sem, contudo, apresentar qualquer critério objetivo para que o consumidor (e, por que não, os produtores e os próprios Procons) possa discernir preços "abusivos" daqueles considerados "justos". A criação de uma Secretaria Especial de Defesa do Consumidor no Estado de São Paulo com prazo de validade de 120 dias e missão de coibir "preços abusivos" em nada ajuda a situação.[3] Mesmo a notável tentativa da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (SENACON) não foi capaz de apresentar critérios objetivos para essa infração etérea.[4]

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Não que todas as mudanças normativas propostas até o momento tenham sido equivocadas ou que outras alterações não sejam, potencialmente, necessárias. Mas gostaria de fazer uma proposta para se somar aos esforços empreendidos até aqui: uma mudança de paradigma da cultura de competição schumpeteriana de destruição criativa para uma visão de espírito esportivo. Entendo, inclusive, que a atual crise que enfrentamos poderá ser um catalizador de uma mudança de comportamento nessa nova direção. Explico.

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Todos somos capazes de recordar histórias de grandes demonstrações de espírito esportivo. Apenas para ficar no futebol, quem se esquece do zagueiro Rodrigo Caio que assumiu ter sido o responsável por uma pancada no goleiro do São Paulo e, com isso, permitiu que o árbitro revertesse sua decisão de aplicar um segundo cartão amarelo no atacante do Corinthians, Jô. Também conhecemos muito bem os exemplos da atitude contrária. Basta lembrar do canadense Ben Johnson na Olimpíada de Seul de 1988 e, para não perder a oportunidade, da "mão de deus" de Maradona.

Tais histórias tem impacto profundo e ficam marcadas em nossas memórias porque refletem a noção de que a finalidade do jogo não é vencer a qualquer custo desde que esteja atuando dentro das regras estabelecidas. Noções de equidade (e.g., esportes de luta tem categorias de peso), respeito e generosidade tem lugar de destaque. Além disso, não basta respeitar as regras do jogo e aderir aos princípios acima, é necessário proteger e promover esses princípios. Teria Garrincha demonstrado sua incomparável destreza se tivesse aproveitado a oportunidade que a contusão do zagueiro tricolor lhe proporcionou? O gol teria sido válido, mas Garrincha sabia que não teria o mesmo valor. Os adversários e, principalmente, o público também sabiam.

Antes mesmo da atual pandemia e da profunda crise econômica e social que virá na sequência, já observávamos lampejos da ideia acima. Em 2019, a associação norte-americana Business Roundtable editou uma nova versão da sua famosa Declaração dos Objetivos de uma Empresa (Statement on the Purpose of a Corporation).

Tradicionalmente, a associação afirmava que a principal finalidade de uma empresa (ou para utilizar o termo brasileiro, a função social da empresa) era "servir ao acionista". A última declaração, assinada por 181 Diretores-presidentes de empresas norte-americanas, contudo, estabeleceu que outros interessados (stakeholders) devem ter lugar de destaque na seguinte ordem: (i) consumidores; (ii) empregados, por meio de programas de educação, treinamento, melhores salários e promoção de diversidade, dignidade e respeito; (iii) fornecedores, por meio do tratamento "justo e ético" de empresas pequenas ou grandes; (iv) meio ambiente; e (v) acionista, através da transparência e entrega de resultados de longo prazo.

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Entendo que iniciativas como a descrita acima se multiplicarão e se aprofundarão. Enquanto o presente texto era escrito, o Banco Itaú anunciava uma doação adicional de R$ 1 bilhão para auxiliar nos esforços de combate à pandemia, totalizando R$ 1,25 bilhão, talvez a maior doação já realizada por uma empresa no Brasil. Consumidores tem aderido a campanhas de apoio aos pequenos empresários, tendência que poderá se manter após o fim da crise.

Do lado público, observaremos maior presença e intervenção do Estado na economia na tentativa de organizar recursos físicos, financeiros, intelectuais e humanos na direção, espera-se, da recuperação social e econômica. Ao mesmo tempo, notaremos maior tolerância a parcerias estratégicas entre concorrentes, em particular pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica. O órgão, inclusive, terá que lidar com os chamados cartéis de crise e atos de concentração de empresas que estão saindo do mercado (failing firm) e saber diferenciar aqueles que merecem ser tratados com leniência e aqueles que são mero oportunismo.

A finalidade do jogo de mercado não é vencer a qualquer custo, é vencer demonstrando excelência e engenhosidade. É ser o mais eficiente, ter a solução mais inovadora, ter o produto mais barato ou de maior qualidade. Mas também é vencer demonstrando equidade, generosidade e respeito ao oponente e ao mercado em si, que inclui diversos outros interessados. É fundamental lembrar que o sistema de mercado serve ao bem-estar social e não o contrário.

*Eric Hadmann Jasper é professor de direito econômico e advogado

[1] Revista Placar n. 487, de 24.8.1979, página 26.

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[2] Vide verbete "Philosophy of sport" da Enciclopédia de Filosofia da Universidade de Stanford. Disponível em (Acesso 10.4.2020).

[3] Vide . Acesso em 12.4.2020.

[4] Vide . Acesso em 12.4.2020.

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