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Espelho, espelho meu: lições de Cass Sunstein sobre a crise democrática brasileira

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Por Laura Barros
Atualização:
Laura Mendes Amando de Barros. FOTO: INAC/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Uma das mais recentes obras de Cass Sunstein, advogado, professor da Universidade de Harvard e especialista em economia comportamental, administrador do Escritório de Informações e Assuntos Regulatórios da Casa Branca durante o governo Obama, traz uma série de reflexões que muito podem contribuir para a compreensão - e superação - do sombrio momento que a democracia brasileira vem enfrentando.

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Em seu "How Change Happens", destaca a noção de 'norm entrepreneur', ou empreendedor de normas, agente responsável pela alteração de regras sociais, e que reflexamente determina também consideráveis mudanças comportamentais.

Cita como exemplos personalidades como Adolf Hitler e Rosa Parks, responsáveis respectivamente pela internalização da ideia de supremacia ariana em detrimento dos judeus e pelo espraiamento da reprobabilidade das normas de discriminação racial, dando início à luta antissegregacionista nos Estados Unidos a partir da sua negativa em ceder a um homem branco o seu lugar em um ônibus na cidade de Montgomery.

Segundo a obra, é cientificamente comprovável que as pessoas tendem a seguir uma lógica de posicionamento e ação conforme tendências publicamente expressadas por um grupo ou líder (assim considerado qualquer um com um mínimo de destaque, representatividade, capaz de se fazer ouvir e influenciar pessoas).

Por outro lado, e considerados os princípios básicos de humanidade e solidariedade, as ideias de exclusão e negativas da liberdade de expressão encontravam-se usualmente (no Brasil, inclusive) imersas em uma aura de pudor, em uma resistência de defesa pública em razão justamente dos fundamentos da sociedade livre, justa, igualitária, solidária e democrática há tempos defendidos e de certa forma sedimentados no ocidente.

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Tal cenário vem sofrendo influxos de líderes e grupos com tendências totalitárias e de exclusão, que, ao identificarem outros propensos à mesma compreensãoe capazes de vocalizar tais ideais sem ruborizar, conseguem encontrar aparente legitimidade.

Em interessante experimento promovido pelo autor, foi possível demonstrar empiricamente que americanos instados a fazer doações a causas relacionadas por exemplo à xenofobia apresentavam certa relutância, certo constrangimento em fazê-lo.

Ao serem lembradas de que - à época - o presidente era Donald Trump, essa postura mudava instantaneamente, de modo que o percentual de efetivos doadores e abertamente apoiadores da causa aumentava expressivamente.

Tal conforto, tal perda do pudor em levantar bandeiras não igualitárias, ditatoriais e antidemocráticas representam eloquente alerta de um retrocesso democrático, com governos absolutistas e sociedades marcadas pela restrição de liberdades.

A repetida divulgação de fake news não as torna verdadeiras - mas as faz mais palatáveis, ou menos chocantes ao logo do tempo, de modo a potencialmente posicioná-las em um espaço de dúvida razoável, funcionando como estímulo para o surgimento de novos defensores de seu conteúdo.

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Nesse sentido, registra o autor a força e influência do 'socialmente aceitável' e os riscos de um afrouxamento na resistência a visões extremistas e segregacionistas.

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O surgimento e cultivo de 'bolhas', em que as pessoas se veem expostas unicamente a 'notícias' e considerações que retratem as suas próprias opiniões e crenças também configura seríssima ameaça à normalidade democrática, com a polarização e perda da racionalidade e capacidade de argumentação, troca e influência mútua para a evolução do pensamento.

A interação exclusiva com pessoas que compartilhem da mesma visão e conceitos tem o efeito - também empiricamente demonstrado pelo pesquisador - de intensificar, de tornar mais extremadas as 'convicções pessoais', assim como mais homogêneos os posicionamentos dos integrantes do grupo.

Sem tecer juízo de valor, a obra nos faz refletir sobre a onda gerada por falastrões aos quais, a partir das redes sociais, é dado propalar os maiores despautérios, repetidas vezes, e atingindo milhares - quiçá milhões - de pessoas.

Há também reflexos positivos desse fenômeno de legitimação pelo grupo: em diversos lugares, conforme aponta o autor, o comportamento masculino de assédio às mulheres era avaliado positivamente, como sinal de masculinidade e poder; esses mesmos locais experimentaram alteração da valoração de comportamentos tais com a explosão mundial do movimento "MeToo", em grande parte impulsionado, uma vez mais, pelas redes sociais.

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O que preocupa são as repercussões do recrudescimento de discursos de ódio, exclusão e extremistas de forma cada vez mais despudorada e direta.

No Brasil, e consideradas tais premissas, o atual momento traz ainda mais preocupações: com uma ação pública marcada pela normalização do sigilo, da negativa ilegal e ilegítima às informações fundamentais ao cidadão, em que o negacionismo da ciência, a indicação oficial de métodos 'científicos' comprovadamente não apenas ineficazes como prejudiciais, a apologia a doutrinas neonazistas e segregacionistas, vemo-nos potencialmente reconduzidos à idade das trevas.

Um presidente capaz de, com total naturalidade, defender publicamente ideias segregacionistas e violência, e propalar desprezo aos direitos humanos fundamentais e princípios democráticos fundantes assume justamente a posição de 'norm entrepreneur', com influência sobre o comportamento e padrões sociais.

A identificação de extremistas e defensores de ideais antidemocráticos até então latentes com um líder tal os encoraja a exacerbar o seu ódio e violência - resultando em uma democracia corroída.

E a pandemia agrava ainda mais a situação: na medida em que a crise epidemiológica se sobrepõe em termos de urgência e necessidade de priorização do salvamento de vidas, discussões aparentemente mais 'filosóficas' ou conceituais acabam atropeladas pela catástrofe das mortes em massa.

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Não podemos olvidar, porém, que essa trágica realidade que hoje vivenciamos é decorrência, inclusive e diretamente, dessa postura de apologia à ignorância, desprezo às instituições e aos valores humanos basilares.

Estivéssemos em um país cujos governantes cultivam o respeito à ciência, a compreensão da importância de um sistema de freios e contrapesos de controle mútuo entre as instituições, a possibilidade de efetivo engajamento da população nos assuntos que lhe são pertinentes, não estaríamos enfrentando o cenário dantesco de hoje - inclusive quanto à absurda e injustificável falta de vacinas.

A normalização da ignorância, da mesquinharia e da prepotência vem ganhando espaço assustadoramente cada vez maior em nosso país.

E com ela, perdemos não apenas milhares de vidas: assistimos à corrosão da nossa democracia, do nosso Estado de Direito.

Mais que nunca, a omissão dos defensores dos valores democráticos redundará - como de fato vem redundando - no assustador crescimento, arraigamento e prática de ideais que, há alguns anos, fariam corar qualquer cidadão minimamente comprometido com os valores da isonomia, solidariedade e democracia.

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A naturalização do segregacionismo, da violência, do segredo quanto aos assuntos de interesse público, de políticas públicas - se é que assim se podem chamar - com base em achismos é nefasta e perigosa.

Que sejamos capazes de frear o processo de degradação de nossa democracia, com o cada vez mais sério comprometimento de suas instituições basilares - e, consequente risco para a liberdade e garantias mínimas como cidadãos.

*Laura Barros, doutora e mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris. Ex-controladora-geral do Município de São Paulo

Este artigo faz parte de uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac), com publicação periódica. Acesse aqui todos os artigos.

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