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'Passo mais curto do que poderia ter sido dado, mas ainda assim é um passo para frente', diz professor sobre Código Civil, que faz 20 anos

Em entrevista ao 'Estadão', professor Daniel Dias, da Escola de Direito da FGV, faz balanço sobre mudanças no texto ao longo das últimas duas décadas

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Por Rayssa Motta
Atualização:

O Código Civil completa duas décadas em 2022 em meio a debates sobre a necessidade de atualização do dispositivo. 

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Ao longo dos últimos vinte anos, o texto sofreu mudanças importantes para prever, por exemplo, a união homoafetiva, a sociedade unipessoal e o direito de laje. 

O projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil, criado por uma comissão de juristas encabeçada pelo ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo Miguel Reale, tramitou durante décadas no Congresso. A aprovação em 2002 acabou dando ao texto o status de primeiro Código Civil no século 21.

Para o professor de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), Daniel Dias, a demora na aprovação do projeto tornou necessária uma atualização antes mesmo do dispositivo entrar em vigor, o que não foi feito. Ainda assim, o pesquisador reconhece melhorias em relação ao regramento anterior, herdado de 1916.

"É um passo muito mais curto do que poderia ter sido dado, mas ainda assim é um passo para frente", avalia. 

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Dias descarta a edição de um novo Código Civil e projeta reformas pontuais e "especializadas" para atualizar as regras em vigor.

"A quantidade de insegurança que um Código novo gera em um primeiro momento é enorme. Você resolve um problema e gera três. Para a sociedade é muito problemático", defende.

O professor é um dos organizadores do Congresso Internacional 20 anos do Código Civil: Avanços e Desafios. O evento acontece nos dias 15 e 16 de setembro no Centro Cultural da FGV no Rio de Janeiro. A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), é uma das convidadas e vai falar sobre a relação entre a Constituição Federal e o Código Civil.

Daniel Dias sobre atualização do Código Civil: "Reformas pontuais, parciais, especializadas são a melhor opção". Foto: Divulgação/FGV

Leia a entrevista completa com o professor Daniel Dias:

ESTADÃO: Quais foram as maiores conquistas do novo Código Civil?

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Daniel Dias: Tem para todos os gostos. Na parte geral, mais introdutória, onde ficam as regras balizadoras de todo o Código, foram incluídas inovações sobre direitos da personalidade. O Código Civil de 1916 não tinha um capítulo próprio para esses direitos. O direito ao nome, privacidade, intimidade, integridade física, que hoje entendemos como sendo básicos do cidadão, não tinham uma tutela tão robusta até 2002.

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Na parte de direitos, obrigações e responsabilidade civil houve a consagração do princípio da boa-fé. O texto estabelece que os contratantes precisam levar em conta também os interesses da outra parte. Foi um chamado à lealdade, à consideração do outro nas relações contratuais. Isso não é pouca coisa: mudou a cara do direito contratual brasileiro. 

Outro princípio muito revolucionário que entrou no Código de 2002 é o princípio da função social do contrato. Isso fica muito claro nas situações em que os contratos violam interesses de terceiros, que causam malefícios ao meio ambiente, por exemplo.

Na parte de Direito Empresarial, tivemos a Lei da Liberdade Econômica, que fez uma ampla reforma no Código Civil e introduziu a figura da sociedade unipessoal. Houve também a atualização do regramento da desconsideração da personalidade jurídica.

Na seara dos direitos reais, nós tivemos a consagração do direito de laje, que é um fenômeno tipicamente brasileiro, o chamado "puxadinho". Não foi com a publicação do Código Civil em 2002, mas durante a vigência do texto nos últimos vinte anos. É muito comum nas favelas alguém dar a parte de cima da casa para outra pessoa construir, hoje em dia esse é um direito autônomo.

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Na área de família e sucessões, houve o reconhecimento das uniões homoafetivas. É um avanço que se projeta no Código Civil a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Foi uma releitura de um dispositivo do Código Civil que permitiu esse reconhecimento.

ESTADÃO: O que precisa ser atualizado?

Daniel Dias: Há avanços e desafios em todas as áreas. O Código ainda fala, por exemplo, que o casamento é uma união entre homem e mulher. Apesar do que está escrito, houve uma interpretação conforme a Constituição para reconhecer as uniões homoafetivas. O que ainda não está assentado é a questão das uniões poligâmicas. Embora a bigamia não seja mais crime, este é um desafio em aberto. A parte patrimonial das famílias poligâmicas, por exemplo.

Outro debate é a contagem dos juros de mora. Até hoje não se sabe qual é o critério para a contagem legal dos juros de mora. Ainda é algo em aberto. Do ponto de vista econômico, é absurdo. É algo que afeta a vida de milhares de brasileiros.

Se animal é coisa ou não é. Em outros países, a legislação vem sendo atualizada para dizer que o animal, apesar de não ser um sujeito de direitos, não é uma coisa, que se alguém maltrata um animal comete crime. Essa categorização ainda é um desafio. Para o nosso Código Civil, animal ainda é coisa, mas há vários debates em âmbito internacional para categorizar melhor a figura dos animais.

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Há ainda debates sobre a reforma de direitos das fundações, reforma do regime das garantias de crédito e o chamado "fresh start" do empresário.

ESTADÃO: Esses pontos podem ser resolvidos com reformas pontuais ou é necessária uma mudança estrutural mais profunda?

Daniel Dias: Há conceitos fundamentais que permanecem e são adaptáveis, sem necessidade de alteração do texto. Por outro lado, há pontos em que a alteração ou pelo menos uma interpretação conforme à Constituição são necessários. Mas reformas pontuais, parciais, especializadas são a melhor opção. A quantidade de insegurança que um Código novo gera em um primeiro momento é enorme. Você resolve um problema e gera três. Para a sociedade é muito problemático. 

ESTADÃO: O projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil tramitou durante décadas no Congresso, o que levou algumas pessoas a dizerem que ele já nasceu velho. Na outra ponta, há quem diga que o jurista Miguel Reale conseguiu usar conceitos jurídicos mais abertos, o que prolongou a capacidade de aplicação do texto. Com qual corrente o Sr. se identifica?

Daniel Dias: Esse é um debate tradicional no Direito. Eu acho que as pessoas estão certas na crítica, mas não onde elas querem chegar. Quem geralmente faz essa crítica chega ao ponto de dizer que era melhor o Código de 2002 não ter existido ou que não precisaríamos de um Código Civil. Eu não concordo. O Código nasceu velho? Nasceu. Ele poderia ser melhor, mas ainda é melhor que o Código de 1916 sem sombra de dúvida. É um passo muito mais curto do que poderia ter sido dado, mas ainda assim é um passo para frente. É o melhor Código que já tivemos.

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ESTADÃO: Fracionar o Código Civil para retirar, por exemplo, o Direito de Família ou o Direito Empresarial é uma opção?

Daniel Dias: Não existe resposta única para essa pergunta. Na Alemanha, por exemplo, o Direito do Consumidor e o Direito do Trabalho estão dentro do Código Civil. O que eu posso dizer é que, se o Direito Empresarial sair do nosso Código Civil, sobraria muito pouco do ponto de vista contratual. Sobrariam basicamente aquelas relações que não são nem de consumo nem empresariais. Seria um golpe muito grave ao Código Civil. Eu não conheço nenhum outro país com um Código Civil tão esvaziado a este ponto. E por que a ideia de Código Civil tem prevalecido em outros países? Porque, quando há várias leis específicas, perde-se em unidade e coerência. Fica mais difícil ter previsibilidade, segurança, unidade e coerência, que são valores muito caros ao Direito.Se já é difícil "vender" o Código Civil para o grande público, se o grande público já não se reconhece mais no Código Civil, embora seja a lei que regula as pessoas do nascimento à morte, imagina com leis setoriais. A ideia de Código Civil ainda prevalece nos principais países.

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