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Entre regulação e difusão de boas práticas: o papel da ANA no setor de saneamento básico

A nova estruturação de competências regulatórias do serviço de saneamento básico trouxe algumas questões latentes quanto a divisão de competência e suas consequências

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Por Beatriz Scamilla e Leonardo Parizotto Gomes
Atualização:

Beatriz Scamilla e Leonardo Parizotto Gomes. FOTOS: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

O Congresso Nacional aprovou recentemente o Projeto de Lei n° 4.162/2019, transformado na Lei n° 14.026/2020, que atualiza o marco legal do saneamento básico e, dentre outras coisas, atribui à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) competência para editar normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento e supervisão dos agentes reguladores que atuam no setor.

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O Brasil fez a opção de adotar dois sistemas independentes: Sistema Nacional de Recursos Hídricos, responsável pela gestão de águas locais, e o Sistema de Saneamento, responsável pelo conjunto de serviços, infraestrutura, abastecimento de água, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, esgotamento sanitário e drenagem de águas pluviais urbanas.

A competência da ANA abrangia apenas gestão de recursos hídricos, mas não de saneamento. Contudo, com as mudanças legislativas nas diretrizes nacionais do saneamento básico, a agência ganha uma atribuição nova, não de regulação, mas de promoção da convergência regulatória no setor em relação aos demais entes subnacionais.

Há uma linha tênue entre a operacionalização do conceito de regulação e difusão de boas práticas; no entanto, o marco legal busca estabelecer de modo claro tais nuances. Com as recentes mudanças, o parágrafo 1° do art. 4°-A da Lei n° 9.984/2000 passa a tratar das matérias a serem estabelecidas pelas normas de referência; como a qualidade e eficiência do serviço, regulação tarifária, metas de universalização, governança das entidades reguladoras, critérios para a contabilidade regulatória, entre outras.

O parágrafo 3° do mesmo artigo, traça os objetivos para a instituição de normas de referência; como estimular a livre concorrência, possibilitar a adoção de métodos adequados às peculiaridades locais, incentivar a regionalização da prestação dos serviços, entre outras. Já o parágrafo 4° estabelece quais procedimentos deverão ser levados em conta na instituição de normas de referência: análise de impacto regulatório (AIR), consultas e audiências públicas, manter diálogo com entidades reguladoras e fiscalizadora, entre outras.

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Apesar do conceito de regulação ser bastante discutível, em sentido técnico é comum se referir a regulação para tratar da interferência direta do poder público no estabelecimento dos parâmetros de atuação dos agentes regulados. Em oposição, a incumbência de difusão de boas práticas ou a regulação de referência costuma ser entendida como intervenção indireta do poder público, concretizada através da orientação para atuação dos agentes reguladores diretos. Portanto, não se confundem.

A Lei 11.445/2007, também modificada, demonstra uma diferenciação entre os termos supracitados. De acordo com o Art. 23, as entidades reguladoras deverão observar as diretrizes determinadas pela ANA e, com isso, editar normas "relativas às dimensões técnica, econômica e social de prestação dos serviços públicos de saneamento básico".

Nota-se, assim, que são os titulares dos serviços públicos de saneamento (Municípios, Distrito Federal e Estados) que ficarão encarregados pela regulação setorial e formulação das políticas públicas de saneamento, não a ANA. Contudo, sempre deverão observar as diretrizes gerais estabelecidas pela Agência, sob prejuízo de inviabilização do acesso a recursos públicos federais ou da contratação de financiamentos com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da administração pública federal[1].

A nova estruturação de competências regulatórias do serviço de saneamento básico trouxe algumas questões latentes quanto a divisão de competência e suas consequências. De acordo com o art. 21, XX, CRFB/88, é dever da União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, o que abarca o setor de saneamento. Mas, como ganhar escala na prestação desse serviço sem prejudicar a segurança regulatória?

Por ganho de escala entende-se o reforço à cultura regulatória enquanto pressuposto legal, de modo a estimular os gestores a se filiarem a sistemas mais estruturados e, assim, facilitar a interlocução com a ANA. O serviço de saneamento é de grande sensibilidade local e, em decorrência disso, uma série de interesses estão envolvidos na prestação.

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O problema, do ponto de vista da regulação, então, passa a ser conciliar realidades tão díspares dentro da norma. O Sistema Nacional de Informações em Saneamento contabilizou, em 2015, 1.442 operadores no sistema, sendo 27 companhias estaduais, 1.326 municípios prestadores e 89 empresas privadas. Nesse sentido, a importância da prestação integrada dos serviços públicos de saneamento básico em determinada região cujo território abranja mais de um Município advém da geração de economias dentro da operação através do ganho de escala.

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A prestação regionalizada, estruturada através de regiões metropolitanas, unidades regionais ou blocos de referência, constitui um dos pontos centrais da reforma de saneamento, juntamente com a figura da gestão associada, que formalmente criou a estrutura de blocos de referência; a qual prevê associação voluntária entre entes federativos, por meio de consórcio público ou convênio de cooperação.

Com o objetivo de proporcionar ganho de escala, as atuais mudanças passaram a condicionar o financiamento com recursos da união aos titulares dos serviços públicos de saneamento básico que aderirem à estrutura de governança correspondente em até 180 dias, por exemplo.

No último dia 15 de julho de 2020 o presidente Jair Bolsonaro sancionou o Projeto de Lei com onze vetos. O veto mais simbólico e, possivelmente, prejudicial, foi o do artigo 16[2], que dispunha sobre a permissão para renovação por até 30 anos, sem licitação, dos contratos de programa, firmados entre os Municípios e as empresas estatais para prestação dos serviços de saneamento. A curto prazo a principal consequência do veto será a realização de licitação nos casos de vencimento dos contratos de programa ou quando houver situações de fato de prestação dos serviços públicos de saneamento básico.

Assim, nota-se que a necessidade da realização de licitação no curto prazo para os contratos iminentes irá influenciar diretamente a estruturação interna - e agora imediata - da ANA; pois é justamente a Agência que irá formular as diretrizes gerais para a regulação contratual, entre outros aspectos discutidos até aqui. Com a mudança, passa-se a exigir em pouco tempo a conciliação da atuação simultânea da ANA em operações decorrentes de processos licitatórios, tendentes à regulação mais contratual, e processos sem licitação, tendentes à regulação mais discricionária[3].

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Portanto, um dos principais desafios da ANA frente a abertura de um ramo inteiramente novo de atuação e diante da capilaridade dos serviços em âmbito nacional, é o enforcement. O processo de implementação das normas de referência não objetiva o enfraquecimento das Agências Reguladoras regionais, microrregionais e municipais, mas sim um reforço da institucionalidade e independência desses órgãos reguladores.

Por isso, ocorrerá a regulação por indução, em que a adoção e implementação das normas de referência, fixadas pelo órgão federal, ocorrerá de modo voluntário, mas incentivado.  Nesse sentido, a harmonização regulatória do setor enfrenta ainda a questão do empoderamento da agência federal, que deve ser capaz de engajar os prestadores de serviço com os novos elementos da regulação na medida de sua competência.

Após a aprovação do PL, o debate público foi inundado pela pauta e, como era esperado, a discussão ficou retida em fábulas políticas como: privatização da água, fim da atuação estatal, entre outras. O objetivo do artigo, no entanto, se concentra no debate sobre o panorama regulatório específico da atuação da Agência Nacional de Águas sem pretensão de esgotar ou apontar todos os desafios a serem enfrentados.

*Beatriz Scamilla, graduada pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Cofundadora da Destro Consultoria Jurídica. Pesquisadora do Laboratório de Estudos Institucionais (LETACI). Assistente de Pesquisa do Projeto "Regulação em Números" da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio)

*Leonardo Parizotto Gomes, graduando em Direito pela UFRJ. Membro do Instituto de Direito Administrativo do Rio de Janeiro (IDAERJ). Membro do grupo de pesquisa em temas de Direito Administrativo. Estagiário pesquisador do Laboratório de Regulação Econômica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e integrante da Rede Ágora

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[1] Vide Art. 4º-B, § 2º; Lei nº 9.984/2000 c/c Art. 50, III; Lei nº 11.445/2007 (Alteradas pela Lei nº 14.026, de 2020).

[2] Art. 16. Os contratos de programa vigentes e as situações de fato de prestação dos serviços públicos de saneamento básico por empresa pública ou sociedade de economia mista, assim consideradas aquelas em que tal prestação ocorra sem a assinatura, a qualquer tempo, de contrato de programa, ou cuja vigência esteja expirada, poderão ser reconhecidas como contratos de programa e formalizadas ou renovados mediante acordo entre as partes, até 31 de março de 2022. Parágrafo único. Os contratos reconhecidos e os renovados terão prazo máximo de vigência de 30 (trinta) anos e deverão conter, expressamente, sob pena de nulidade, as cláusulas essenciais previstas no art. 10-A e a comprovação prevista no art.10-B da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, sendo absolutamente vedada nova prorrogação ou adição de vigência contratual.

[3] A diferença entre essas duas operações, do ponto de vista da atuação da agência, está na carga regulatória alocada. A primeira, estressada pelo procedimento licitatório, teve a eficiência do operador testada pela concorrência e preço da prestação do serviço definido no contrato de concessão. Assim, a atuação da agência é concentrada na garantia do enforcement do contrato. Já no segundo caso, dos contratos de programa ou prestação de fato, a eficiência não capturada no processo licitatório deve ser absorvida pelo processo tarifário, de modo que a atuação da agência se concentra na sua regulamentação.

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