A grande expectativa sobre a divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril parece ter anestesiado a percepção de muita gente sobre a gravidade dos problemas que ele expõe. Precisamos ter cuidado. A anestesia vem da banalização do absurdo. Esse é justamente o método do autoritarismo. "A liberdade não se perde de uma vez, mas em fatias, como se corta um salame", alertava Friedrich Hayek.
Lembremos o que deveria ser óbvio. O poder executivo deve guiar políticas públicas a nível nacional, protegendo os direitos individuais dos brasileiros. Vivemos a maior pandemia do século. Em defesa da vida e da saúde, o governo deveria focar energias no combate à doença. A reunião em questão foi a primeira após a demissão do ex-ministro da saúde Henrique Mandetta. Era a estreia de Nelson Teich. Mas a pandemia ficou em segundo plano. Mais importante era cobrar dos ministros uma defesa apaixonada da personalidade do presidente. Pior: a abordagem da pandemia mais presente na reunião é como pretexto de teorias conspiratórias de supostos atentados contra as liberdades.
Ao mesmo tempo, o vácuo desse discurso é escancarado com uma absoluta falta de entendimento do que a liberdade significa. Os ministros desfilam mentalidade autoritária por todos os lados. Falam em prender governadores, prefeitos e ministros do STF. Tratam diversidade étnica como um problema de valores. E a independência de poderes como um mal a ser combatido. O desprezo à vida e à democracia chega a tratar a pandemia como oportunidade para avançar medidas controversas sem ter que submetê-las ao devido escrutínio público, enquanto a sociedade precisa usar suas energias para evitar mortes e enterrar entes queridos.
A própria bagunça de uma reunião ministerial sem pauta, sem objetivo claro e sem a mínima ordem evidencia o caos organizacional. Não há barraca de rua ou reunião de condomínio capaz de gerar resultados eficientes com esse modelo de gestão. O pagador de impostos financia compulsoriamente a coordenação de políticas públicas, não sessões caóticas de desabafos pessoais entrecortados por pitacos a esmo. Cenas de um governo que não entende o papel do executivo numa democracia liberal.
Por toda a reunião, Bolsonaro fala do Estado brasileiro como um apêndice de seus interesses políticos, pessoais e familiares. Um patrimônio seu. Aos palavrões, brada que interferirá em qualquer instituição para defender os interesses de sua família. Despreza a legitimidade democrática de governadores e prefeitos que foram tão eleitos pelo voto popular quanto ele. Ao fazer tudo isso, Bolsonaro não apenas ignora, como atropela todos os princípios que devem reger a administração pública, segundo a Constituição Federal que ele jurou defender em sua posse. Não há impessoalidade, moralidade, nem interesse público. Há o mais puro patrimonialismo.
E vale lembrar: a tradição patrimonialista do Estado brasileiro, que mistura o público e o privado a partir dos interesses dos poderosos e seus amigos, é a herança mais duradoura de nossa formação nacional. E é também a maior inimiga da consolidação de um ambiente de respeito às liberdades individuais. Quando o verniz das palavras de ordem contra o establishment está pintado sobre esses valores, o que temos é uma nova roupa para o mais velho patrimonialismo. Remete a Capitanias Hereditárias, não a República Federativa.
Todos sabemos que o Estado brasileiro ainda possui muitas falhas. É contra elas que trabalhamos. Desde a redemocratização, nossas instituições têm amadurecido passo a passo nas limitações do poder, consolidando direitos individuais para que todos sejam iguais perante a lei. O único caminho de avanço é continuar corrigindo nossos problemas através de reformas, dentro das regras do jogo.
É aterrador que alguns autoproclamados liberais tenham ficado entusiasmados ao ver algumas palavras-chave da retórica liberal sendo usadas pela alta cúpula do governo durante esta reunião. Palavras-chave não representam valores. Jogadas ao vento, são vazias de sentido. Como uma tinta mal pintada, só escondem a ferrugem para quem prefere o autoengano. A suposta defesa da liberdade através do armamento ostensivo da população foi posta claramente em nome do combate a prefeitos e governadores legitimamente eleitos e que atuam dentro dos limites da lei, segundo o STF, mas que não se submetem aos desmandos da Presidência da República. Estamos falando do projeto aberto de formação de uma milícia para-governista para enquadrar autoridades não cooptadas pelo bolsonarismo. Método bolivarianista utilizado pelos tiranos da Venezuela.
Narrativas não podem valer mais do que os fatos. A liberdade se fortalece através das instituições, transparentes, democráticas e limitadas em suas atribuições constitucionais. Elas são aperfeiçoadas através de reformas, pelos representantes da pluralidade social, eleitos através do voto, no Congresso. Não há atalhos. Usar a legítima insatisfação da população contra as falhas do sistema para tentar derrubá-lo não é um ato de defesa da liberdade, mas de ataque: libera apenas os velhos instintos autoritários que caracterizam o Estado brasileiro desde a origem e aniquila os direitos individuais.
O que vemos exposto é o ódio destrutivo de quem deseja o poder sem limites. Essas são as entranhas autoritárias do governo Bolsonaro. Se normalizarmos isso enquanto sociedade, a barbárie vencerá e a liberdade de todos os brasileiros sofrerá um duro golpe.
*Mano Ferreira é jornalista, especialista em comunicação política e diretor do Livres