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Encontro das Águas: entre desabraços e desavenças

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Por Allan Carlos Moreira Magalhães
Atualização:
Allan Carlos Moreira Magalhães. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

O Encontro das Águas dos rios Negro e Solimões é o fenômeno natural símbolo da cidade de Manaus e do Amazonas que se faz presente nos brasões tanto do Estado quanto da Capital. Encontra-se também no pano de boca do Teatro Amazonas, no qual a natureza é representada em forma de mulher mítica - a deusa Vênus - que curiosamente separa os rios que não se abraçam.

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Eis um dos grandes mistérios do Encontro das Águas: qual o motivo do "desabraço" dos rios? Thiago de Melo se pôs a perguntar por aí, a doutos e a simplórios, para gente crescida e viajada; mas para o poeta, quem conseguiu melhor explicar tal fenômeno foi o Jovem Raimundo Doza:

"Os rios são todos dois muito grandes já demais. Todos dois são muito fundos, todos dois são muito corredores. Mas o que são mesmo é orgulhosos. É de puro orgulho que não se misturam. Ficam assim juntinhos, sem brigar um com o outro, mas nada de intimidades. Cada qual em seu terreiro, cada qual querendo ser o mais bonito, o mais pávulo. É isso..." 1

O encontro dos rios que não se abraçam é mais do que um fenômeno natural, pois permeia o imaginário de agrupamentos humanos, desde períodos anteriores à chegada do colonizador europeu. Os antigos habitantes da Amazônia deixaram registros em rochas (petróglifos) na Ponta das Lajes, visíveis nos períodos de vazante evidenciando a importância do lugar para a arqueologia. O relato do frei Gaspar de Carvajal, cronista que acompanhou a expedição de Francisco de Orellana em 1542, fala do Encontro das Águas e de como essa região era densamente povoada pelos povos indígenas, sendo o primeiro registro escrito desse encontro.

No mito de criação de alguns povos indígenas, o Encontro das Águas é local por onde a sucuri ancestral passou durante a viagem para a criação do mundo. Na poesia amazônica, os dois rios com o encontro das águas negras e barrentas embalam um universo lúdico, onírico, mítico e romântico que mostra que tal fenômeno é único, a embalar metáforas sobre amor e desejo como o poema de Quintino Cunha, cearense que viveu lá (Fortaleza) e cá (Manaus), cuja fama lhe chegou pelos poemas e prosas regados a humor e ironia, mas também fez poesia sobre o Encontro das Águas:

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Encontro das Águas (Rios Negro e Solimões):

Vê bem, Maria, aqui se cruzam: este

É o Rio Negro, aquele é o Solimões.

Vê bem como este contra aquele investe.

Como as saudades com as recordações.

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Vê como se separam duas águas,

Que se querem reunir, mas visualmente;

É um coração que quer reunir as mágoas

De um passado, às venturas de um presente.2

Contudo, o encanto do Encontro das Águas e o fato de ser fenômeno único, sem equivalentes em qualquer outro lugar, parece ser indiferente para os projetos econômicos que desejam instalar na região um terminal portuário. Essa desavença é recente, considerando os achados arqueológicos na região, mas se não chegar a um termo favorável ao desabraço dos rios com a preservação dos seus valores culturais e ambientais, estar-se-á, inexoravelmente, diante de uma perda inestimável para a humanidade, com o perecimento do seu patrimônio cultural.

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A desavença não é pequena e já tramita há tempos perante a Corte Suprema. O projeto de construção do Porto das Lajes almeja ocupar um espaço sobre o Encontro das Águas considerado pela Autarquia Federal 3 que promoveu o tombamento o mais importante e sensível sob a perspectiva ambiental e paisagística.

Assim, desde que o IPHAN sinaliza a adoção de medidas protetivas do Encontro das Águas que posteriormente são formalizadas com o tombamento durante a 65ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural em novembro de 2010, as desavenças se acirram. No Supremo Tribunal Federal tramitam Ações Cíveis Originárias (ACO)4, pois as disputam colocam na berlinda o pacto federativo. No Congresso Nacional houve inclusive Projeto de Lei5 para criação de uma Área de Proteção Ambiental (APA) do Encontro das Águas, mas o seu prosseguimento foi obstado a pedido da própria autora do projeto.

Os processos judiciais perante o STF estão com a tramitação suspensa numa tentativa de solução conciliatória entre os entes públicos envolvidos e as empresas privadas que almejam a construção do porto. Não é uma negociação simples porque envolve um bem cultural e natural de elevada complexidade, sensibilidade e dinamicidade que impõe o máximo de cautelas.

O que se espera e deseja como desfecho destas desavenças é que se proteja o desabraço dos rios Negro e Solimões para que ele continue a fascinar a todos com sua beleza incomensurável e inexplicável. E o mais importante, que o Encontro das Águas que surge com a aurora do mundo possa continuar vivo mesmo quando já não mais estejamos aqui para contemplá-lo.

*Allan Carlos Moreira Magalhães, doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais.  Autor do livro Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais

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1.MELLO, Thiago de. Amazonas: pátria das águas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 104.

2.CUNHA, Quintino. Pelo Solimões. Manaus: Valer, 2010, p.58.

3.IPHAN. Tombamento do Encontro das Águas n. 1.599-T-10. Dossiê. Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização - DEPAM/IPHAN, 2009, p. 396v.

4.STF. ACO n. 2512; ACO n. 2513 e ACO n. 2514.

5.Projeto de Lei n. 4999/2009 que dispunha sobre a criação da Área de Proteção Ambiental do Encontro das Águas, no Estado do Amazonas. A tramitação do Projeto foi encerrada a pedido da autora da proposta.

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