O governo gosta de usar a tática de fazer cortesia com chapéu alheio. A mais inteligente estratégia do constituinte de 1988 foi elaborar o artigo 236, que transformou os antigos cartórios em eficientes delegações extrajudiciais. Foi a partir daí a verdadeira revolução no sistema notarial e registral brasileiro. Por atuarem nos moldes da iniciativa privada, puderam modernizar-se, automatizaram-se, usaram das modernas tecnologias que são fruto da Quarta Revolução Industrial e tornaram-se modelo de prestação estatal. Confiáveis, transmitem segurança jurídica e a cada dia se tornam mais céleres, exatamente conforme o exigem sociedade e mercado.
Só que os governos, tanto federal, como estadual, procuram atender a necessidades várias, muitas delas desvinculadas de qualquer conotação com o serviço afeto às delegações, para onerar a cidadania e isentar-se de responsabilidade que é deles, os governos.
Em boa hora, o Supremo Tribunal Federal, num voto do Ministro Gilmar Mendes, declarou inconstitucionais as taxas cartorárias de Goiás, destinadas a órgãos sem qualquer relação com o sistema Justiça.
O artigo 15 da Lei goiana 19.191/15, estabelecia a cobrança extra de mais de 20% sobre os emolumentos pagos aos cartórios. Previa um adicional de 40% sobre as taxas cartorárias, para distribuição entre doze órgãos ou entidades, que incluíam até a Assembleia Legislativa.
No julgamento virtual de 21.6.2022, decidiu-se que as taxas criadas por essa lei somente podem se destinar a Fundos voltados ao aperfeiçoamento de estruturas que sejam essenciais à Justiça. Os emolumentos eram acrescidos de 8% para o Fundo Estadual de Segurança Pública, 3% para o Estado, 2,4% para o Fundo Penitenciário Estadual, 3% para o Fundo Especial de Modernização e Aprimoramento Funcional do Ministério Público, 3% para o Fundo de Compensação dos Atos Gratuitos praticados pelos Notários e Registradores 2% para o Fundo Especial de Pagamento de Advogados Dativos e do Sistema de Acesso à Justiça, 2% para o Fundo de Manutenção e Reaparelhamento da Procuradoria Geral do Estado, 1,25% para o Fundo de Manutenção e Reaparelhamento da Defensoria Pública do Estado, 1,25% para aplicação em programas e ações no âmbito da administração fazendária, 2,5% para o Fundo Especial de Modernização e Aprimoramento Funcional da Assembleia Legislativa e 1,6% para o Fundo Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Embora a destinação desse acréscimo não seja imoral, não é certo onerar a cidadania que acorre aos serviços notariais e registrais para finalidades que devem ser atendidas pelo Erário, não pela população. Esta já paga tributos suficientes para a manutenção da pesada máquina estatal.
A matéria não é nova no STF, que já pacificou a tese de que são hígidas as normas estaduais que destinem parcela da arrecadação dos emolumentos extrajudiciais a fundos voltados ao financiamento da estrutura do Poder Judiciário ou de órgãos e funções essenciais à Justiça.
Com isso, não atendem a esse requisito o Fundo Estadual de Segurança Pública, o Fundo Especial de Apoio ao combate à lavagem de capitais e às organizações criminosas, o Fundo Penitenciário Estadual, o Fundo Especial de Modernização e Aprimoramento Funcional da Assembleia Legislativa do Estado, assim como o Fundo Estadual dos Direitos da criança e do adolescente.
O Ministro Gilmar Mendes também observou que não pode haver destinação dos emolumentos para reforma, aquisição e ou locação de imóveis para delegacias de polícia e aplicação em programas e ações no âmbito da administração fazendária.
A tributação merece interpretação restritiva, pois é uma imposição que sacrifica a cidadania. O Brasil já possui um dos mais elevados ônus mundiais quanto à fome fiscal do Estado. Ora, é este, o destinatário de considerável massa de recursos hauridos entre contribuintes que trabalham muitos meses a cada ano para satisfazer os tributos, que deve manter hígidos os serviços pelos quais não pode haver cobrança autônoma.
Os pesados encargos a que a população está submetida são suficientes para a manutenção e aprimoramento de serviços gratuitos, porque públicos e destinados a todas as pessoas. Cobrar taxas adicionais para manter a oferta de prestações obrigatórias do Estado é, efetivamente, incompatível com a ordem fundante. Julgamento auspicioso para a cidadania. Isso desonera, consideravelmente, o custo dos serviços estatais delegados, ao menos para os goianos. Que o exemplo contamine as demais unidades da Federação. Os brasileiros têm direito a uma cobrança justa.
*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2021-2022