Foto do(a) blog

Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Em tempo de quebras e demissões: a transferência do privilégio trabalhista à luz da legislação falimentar

PUBLICIDADE

Por Willie Cunha Mendes Tavares , Bernardo Salgado e Mateus Reis
Atualização:
Willie Cunha Mendes Tavares, Bernardo Salgado e Mateus Reis. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

  1. Introdução

PUBLICIDADE

Os prelúdios de bons tempos que se anunciavam em 2019 foram abalados, em cheio, pela pandemia instaurada por força do novo coronavírus. Tem-se dito que uma avalanche de pedidos de recuperação judicial e falência se avizinha, notícia que ganha credibilidade quando se observa que em abril os números de quebras e tentativas de soerguimento já cresciam na exponencial.[1] Em outra ponta do mesmo fenômeno, estima-se que o fechamento de postos de trabalho assumirá patamar recorde, com 12,9% de brasileiros já compondo a categoria dos que amargam o desemprego.[2] O Brasil experimenta tempo adverso, de quebras e demissões.

Momento como este sublinha a necessidade de colocar em debate norma relevante da legislação falimentar, relacionada ao regime atribuível a créditos trabalhistas que estejam submetidos a procedimentos de recuperações judiciais e falências.

Embora todos saibam que os créditos derivados da legislação do trabalho ostentam posição privilegiada no concurso de credores,[3] não são frequentes os estudos sobre a qualidade destes mesmos créditos nas hipóteses em que i) o titular, empregado da falida/recuperanda, decide cedê-lo ou ii) terceiro potencialmente afetado pela dívida resolve - ou se vê obrigado - a quitá-la.

Tais circunstâncias já não se afiguravam incomuns. E, na conjuntura que se aproxima, cogita-se tanto do aumento na quantidade de colaboradores desejosos de cederem seus créditos a terceiros, como também de potenciais coobrigados ao pagamento dos créditos trabalhistas serem compelidos a arcar com dívidas que, originalmente, não lhes pertencia.

Publicidade

Daí por que se faz oportuno colocar em pauta o destino que recebe o crédito trabalhista à vista de cada uma dessas situações. Em especial, cumpre examinar se o crédito perde, ou não, o privilégio quando a situação jurídica ativa deixa de ser ocupada pelo empregado e passa a ser ocupada por cessionário ou por terceiro que se sub-rogou.

Antecipe-se que o §4º do art. 83 da LFR disciplina em parte a matéria, ao assinalar que "créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários", refutando a atribuição de privilégio a cessionário de ativo oriundo de relação estabelecida entre a sociedade empresária e colaborador seu. A norma, porém, merece ser destrinchada, principalmente para que se estabeleça a necessária dissociação entre a cessão de crédito de que cuida o §4º do art. 83 e instituto distinto de direito civil, consistente na sub-rogação, vista com frequência na prática, mas não regulada, pelo menos não expressamente, pela legislação de regência.

É especificamente este o objetivo principal da análise realizada nas próximas seções: avaliar se o crédito trabalhista perde ou sustenta o privilégio quando é objeto de sub-rogação, passando à titularidade de credor que não mantinha vínculo de trabalho com a sociedade sujeita à falência ou à recuperação.

Como segundo passo, e a respeito das conclusões estabelecidas na primeira parte do texto, analisa-se também a interpretação que deve ser conferida à limitação de 150 salários (disposta no art. 83, I, da LFR) quando operadas sub-rogações múltiplas em favor de um mesmo credor.

Governando-se o texto por tais objetivos, quatro seções compõem a análise, a par desta introdução. A primeira cuida, precisamente, da diferenciação entre as cessões e sub-rogações, concentrando-se ali o exame sobre a manutenção ou perda do privilégio quando, em vez de cedido, o crédito passa à titularidade de terceiro sub-rogado; a segunda se dedica à apresentação do panorama desenhado na jurisprudência acerca dos temas; na terceira será estudada a mencionada limitação quantitativa; e, então, na quarta, reúnem-se as duas principais conclusões alcançadas ao longo das seções que compõem estas notas.

Publicidade

Cuida-se, apenas, de tentativa de contribuição breve para matéria que, se já não está no centro das atenções, em pouco protagonizará a pauta do Judiciário do país nas questões envolvendo recuperações e falências.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

  1. Cessões e sub-rogações, alhos e bugalhos

O art. 83, §4º, da LFR é categórico ao vedar a transferência do privilégio creditório aos cessionários de créditos trabalhistas. No dispositivo se faz referência, especificamente, à cessão de crédito, negócio jurídico pelo qual o credor (cedente) transfere a outrem (cessionário) direitos decorrentes de determinada relação obrigacional.[4]

A norma do §4º do art. 83 é imbuída, principalmente, do propósito de evitar a especulação em torno dos créditos derivados da legislação do trabalho. Se fosse possível transmitir a cessionários os mesmos privilégios outorgados aos colaboradores, pode-se imaginar o assédio que recairia sobre os empregados necessitados, presas fáceis de especuladores interessados em adquirir esses ativos com deságios significativos.[5] É para não conceder margem à formação de um "mercado paralelo" de créditos trabalhistas sujeitos a recuperações e falências que se impede, no citado dispositivo, a transmissão do privilégio.

Observe-se que no art. 287 do Código Civil se registra que, "[s]alvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus acessórios". É o próprio art. 287 que ressalva a eventualidade de disposições legais ou negociais afastarem a regra geral, tal como se passa na hipótese aqui abordada. Fala-se, afinal, de um privilégio intuitu personae, estabelecido em razão de qualidade subjetiva do cedente[6] e sob a preocupação de não oferecer margem para que mercado paralelo se desenvolva e se aproveite, ilegitimamente, do fundamento protetivo da norma.

Publicidade

O art. 83, §4º, deve ser lido não só pelas lentes dos termos literais que utiliza, mas, principalmente, sob o influxo da teleologia que subjaz ao enunciado normativo.[7] Veda-se a transferência do privilégio creditório na cessão de crédito, mas a cessão de crédito, mecanismo de transmissão de direitos vinculados a dada relação obrigacional, não deve ser confundida com o instituto da sub-rogação, que é regulado pelos arts. 346 a 349 do Código Civil.

Entre esses dois institutos há "profunda diversidade de funções, já que, enquanto a sub-rogação presta-se a amparar o devedor, a cessão de crédito tem geralmente propósito especulativo dirigido ao atendimento do interesse exclusivo do credor".[8]

Com efeito, a sub-rogação não exprime, prioritariamente, meio de transmissão de obrigações. Encerra modo especial de pagamento, pelo qual outra pessoa, que não o devedor originário, efetua o pagamento ao credor e passa a assumir a posição deste na relação obrigacional. É o que acontece, exemplificativamente, com o fiador que paga a dívida do devedor principal e adquire a titularidade do crédito, podendo cobrá-lo do devedor. "O credor sai da relação jurídica, mas outrem lhe fica no lugar. Satisfaz-se o credor sem que o devedor se libere. Outrem, em verdade, adimpliu, e não o devedor, que há de adimplir a quem adimpliu",[9] como explica Pontes de Miranda.

Duas são as espécies de sub-rogação: a legal, objeto do art. 346 do Código Civil,[10] e a convencional, tratada no art. 347.[11] À exceção da sub-rogação convencional disciplinada no art. 347, I, muito semelhante à cessão de crédito, o instituto da sub-rogação é, estrutural e funcionalmente, inconfundível com a cessão. A especulação característica das cessões de crédito não se faz presente, como regra, nas sub-rogações, menos ainda nas sub-rogações legais. O terceiro que efetua o pagamento da dívida o faz por ter interesse jurídico legítimo em que a obrigação seja satisfeita, não por livre desejo de assumir o polo obrigacional antes ocupado pelo credor originário.

É exatamente essa a dinâmica que se passa, por exemplo, com determinada sociedade empresária que efetua o pagamento de dívida trabalhista pela qual era, ou podia ser, obrigada (art. 346, III, CC). Dando concretude à hipótese, suponha-se que dada sociedade promova a subcontratação de serviços relacionados às atividades que desenvolve, e a sociedade subcontratada, posteriormente, vem a falir.

Publicidade

Por sua vez, empregados que laboravam diretamente para a subcontratada ajuízam suas reclamações trabalhistas tanto contra a empregadora, como também em desfavor da própria subcontratante, embora com esta não mantivessem vínculo empregatício. Sustentam, com apoio na Súmula 331 do TST,[12] que a subcontratante deve ser condenada subsidiariamente ao pagamento das indenizações, por também se aproveitar da força de trabalho.

Caso, em exemplo dessa sorte, a subcontratante promova o pagamento da indenização trabalhista - pela qual era apenas subsidiariamente obrigada -, a sub-rogação operará em seu favor, consoante prevê o art. 346, III, do Código Civil. Nesse caso, não cabe falar em cessão de crédito, como sói acontecer em disputas estabelecidas em procedimentos falimentares e recuperacionais. A hipótese é de sub-rogação legal, ainda que a consequência translatícia seja fenômeno comum à cessão e à sub-rogação.

Se é certo que a transmissão do privilégio creditório não tem lugar quando verificada a cessão de créditos, idêntica afirmação não vale para os casos de sub-rogação. O art. 83, §4º, da Lei de Falências e Recuperações não se aplica ao instituto da sub-rogação, operada por força de lei. A só literalidade do art. 83, §4º, já chancelaria essa afirmação, tendo em vista que o legislador optou por se referir aos "créditos trabalhistas cedidos a terceiros", quando poderia fazer referência ao gênero transferidos, termo que, na pura dicção, estaria apto a também abranger os créditos objeto de sub-rogação.

O apego à forma, porém, não se erige em aspecto central. Vale, acima de tudo, a substância: o art. 83, §4º, da Lei de Falências e Recuperações Judiciais é presidido por uma racionalidade específica, como visto acima. Além de prestigiar o fundamento pelo qual o privilégio é outorgado, busca-se evitar a especulação, colocando-se os empregados necessitados na mira de adquirentes que, com disponibilidade para aguardar, ofereçam a compra a custo baixo, desvirtuando a lógica protetiva que guia a atribuição do privilégio. Nada disso se passa na sub-rogação legal, especialmente quando ela se concretiza após o devedor que era (ou podia ser) obrigado pela dívida realizar o pagamento no lugar da falida/recuperanda.

Note-se, apenas em acréscimo, que também na disciplina da sub-rogação há norma expressa indicando que o instituto deflagra a transferência "ao novo credor [de] todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores" (art. 349, CC).

Publicidade

Assim, se sociedade empresária potencialmente obrigada realizar o pagamento de dívida que tinha a recuperanda/falida como sujeito passivo principal, a sub-rogação operará de pleno direito (art. 346, caput, CC), e o privilégio creditório não se perderá, diversamente da lógica que orienta as cessões.

O art. 83, §4º, da LFR é aplicável às cessões de crédito, mas não às sub-rogações legais. Estrutura e função da sub-rogação legal não chancelam a importação da proibição estabelecida para as cessões de que o dispositivo fala.

  1. A transferência do crédito trabalhista pelas lentes da jurisprudência

O Superior Tribunal de Justiça ainda não teve a oportunidade de apreciar controvérsia que dissesse respeito a sub-rogações avaliadas pela ótica do art. 83, §4º, da LFR.

No entanto, examinando caso relativo a cessão de crédito, a 3ª Turma do STJ - embora tenha reafirmado a regra de que o cessionário deve ser incluído como credor quirografário no concurso - consignou expressamente que a solução adotada na hipótese decorria "do caráter especulativo arraigado à cessão de crédito", o que "não se dá em outros institutos afins, como é o caso da sub-rogação".[13]

Publicidade

Noutro precedente, a Corte Superior também enfatizou o fundamento por trás da vedação à transferência do privilégio. Anotou, nesse sentido, que "a cessão do crédito trabalhista a terceiro retira seu privilégio, tornando-o quirografário, o que claramente demonstra a intenção do legislador de afastar de empregados necessitados a compra de seus créditos trabalhistas por valores depreciados"[14].

Já nas Cortes Estaduais é possível colher precedentes em que a sub-rogação, especificamente, foi examinada. E eles revelam que a jurisprudência tem se consolidado também no sentido da tese defendida acima.

No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, v.g., é possível encontrar acórdãos variados assinalando que "créditos trabalhistas pagos por terceiros interessados, em razão de decisão da Justiça Laboral" acarretam sub-rogação do particular que os quita, o "que se dá com todas as qualidades do crédito, inclusive os privilégios e inclusão na classe de credores trabalhistas"[15].

Outro recente julgado proferido no TJSP ao final de 2019 ratifica essa tendência. Ao dirimir debate sobre a correta classificação de créditos constituídos em razão do pagamento de indenizações a funcionários de recuperanda, consignou-se que deveriam ser mantidos os privilégios.

Segundo a e. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, a sub-rogação "é substancialmente diferente da cessão de crédito tratada no artigo 286 do Código Civil, que naturalmente não tem o condão de transferir ao cessionário privilégios personalíssimos do cedente".[16]

Publicidade

Acórdãos anteriores do mesmo Tribunal caminharam nessa linha de entendimento. Podem ser citadas as decisões proferidas no AI nº 2208505-35.2018.8.26.000, da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Des. Rel. Ricardo Negrão, j. em 03.05.2019, no AI nº 2152200-02.2016.8.26.0000, da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Des. Rel. Caio Marcelo Mendes de Oliveira, j. em 29.03.2017, e, finalmente, no AI 20566-20.2018.8.26.0000, também da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Des. Rel. Araldo Telles, j. em 23.07.2018.

Da mesma maneira, noutros Tribunais é igualmente possível encontrar precedentes que seguem idêntica compreensão, tal como se passou no TJRJ, AI 0002635-66.2011.8.19.0000, da 15ª Câmara Cível, Rel. Des. Sérgio Lúcio Cruz, j. em 15.03.2011. Também ali se seguiu o raciocínio de que, "se o crédito do sub-rogado está inserido no inciso I, do art. 83 da Lei 11.101/2005 e tendo havido a sub-rogação aos agravantes, devem eles ocupar a mesma posição no Quadro Geral de Credores".

A cessão de crédito e a sub-rogação não se confundem, e, por consequência, produzem efeitos diversos. O coobrigado chamado a responder pelos créditos trabalhistas não perde o privilégio, conforme já vem se consolidando a jurisprudência a respeito da matéria.

  1. A limitação de 150 salários nas sub-rogações: por credor ou por crédito?

O privilégio conferido aos créditos derivados da legislação do trabalho é limitado, pelo art. 83, I, da LFR, a 150 salários mínimos. Na forma do inciso VI, "c", do mesmo art. 83, o valor eventualmente excedente deve ingressar no concurso como crédito quirografário - destituído, pois, de qualquer beneplácito.

Publicidade

Nesse contexto, questão que pode emergir é a de definir se, operadas várias sub-rogações em favor de um mesmo credor, a limitação dos 150 salários deve se estabelecer por relação obrigacional ou por terceiro sub-rogado.

Noutros termos, e adotando o mesmo exemplo fornecido anteriormente: se determinada sociedade empresária efetua o pagamento de diversos empregados da recuperanda/falida, o limite de 150 salários mínimos se aplica a cada relação trabalhista em que a sub-rogação se realizou? Ou, em vez disso, é aplicável como limite único, a que estarão sujeitos, globalmente, todos os créditos que passaram a ser de titularidade do credor sub-rogado?

A dúvida ganha relevo quando se imagina que, na conjuntura vigente, não é raro que sociedades empresárias terceiras - conforme exemplificado acima - sejam frequentemente responsabilizadas em demandas trabalhistas ajuizadas por empregados da recuperanda ou falida, por variadas razões - duas delas, exemplificativamente, são a terceirização e a configuração de grupo econômico.

Todavia, eventual querela deve ser dirimida pelo próprio conceito de sub-rogação, mecanismo de transferência da situação jurídica ativa da relação obrigacional, pelo qual o terceiro que satisfaz o débito assume o polo ativo antes ocupado por outrem. Caio Mário da Silva Pereira lembra que, "na palavra mesma que exprime o conceito (do latim sub rogare, sub rogatio) está contida a ideia de substituição, ou seja, do fato de uma pessoa tomar o lugar de outra, assumindo a sua posição e a sua situação".[17] O terceiro que paga a dívida passa a titularizar com a recuperanda/falida tantas relações jurídicas quantos sejam os créditos objeto de sub-rogação, e não uma relação jurídica única, submissa a uma única limitação valorativa.

Nessa vertente, o limite de 150 salários deve ser aplicado a cada relação obrigacional; deve incidir por relação, e não por credor, já que um mesmo sujeito obrigacional pode ter se sub-rogado em relações jurídicas várias,[18] e isso não por uma liberalidade própria, como se verificada na cessão creditória, mas porque dispunha de interesse legitimamente tutelável à satisfação da dívida. Na maioria das vezes, aliás, esse pagamento sucede imposição ou iminente imposição judicial, a corroborar que não se trata, mesmo, de liberalidade.

Avalie-se também que, do contrário, caso a sub-rogação não se operasse por relação jurídica, outros credores submetidos ao concurso ainda se beneficiariam sem razão jurídica que lhes legitime assumir posição de vantagem: parte dos créditos que na formatação obrigacional originária pertencia aos credores trabalhistas (e era, pois, dotada de privilégio) passaria à classe quirografária depois do pagamento efetuado por terceiro que - não por opção, mas por obrigação - quitou dívida da recuperanda/falida.

Assim, o limite consagrado no art. 83, I, incide por relação jurídica. Se uma mesma parte terceira honrar o crédito de mais de um empregado sujeito à recuperação judicial ou à falência, os 150 salários deverão ser aplicados por relação, independentemente da identidade do credor.

  1. Conclusão

Essas breves razões desenvolvidas acima sobre a exegese do art. 83, §4º, da Lei de Falências e Recuperações Judiciais permitem duas conclusões centrais.

Em primeiro lugar, o mencionado dispositivo legal cuida de cessões de crédito (art. 286 do CC), que não devem ser confundidas com sub-rogações legais (art. 346 do CC).

Ressalvada a semelhança existente entre as cessões e as sub-rogações convencionais disciplinadas no art. 347, I, do Código Civil, os institutos da cessão e sub-rogação se revestem de estrutura e funções próprias. A LFR, propositalmente, faz referência apenas à cessão de créditos trabalhistas, mas não à sub-rogação, que se opera de pleno direito em favor de eventual terceiro que - obrigado ou potencialmente obrigado pela dívida - efetua pagamento de crédito pertencente a empregado da recuperanda ou da falida.

A propósito, como foi demonstrado na terceira seção do texto, embora o Superior Tribunal de Justiça ainda não tenha examinado o art. 83, §4º, sob a ótica das sub-rogações, acórdãos formados em Tribunais estaduais encamparam essa mesma conclusão, frisando que nas sub-rogações o privilégio é mesmo transferido.

Em segundo lugar, é bem de ver que a limitação de 150 salários mínimos fixada no art. 83, I, da LFR deve ser aplicada por relação trabalhista em que a sub-rogação legal tenha se operado, ainda que uma mesma parte terceira tenha sido assumido o polo ativo de mais de uma relação obrigacional. Não se aplica o limite com os olhares endereçados para a titularidade do crédito, mas para a relação que envolvia a falida ou a recuperanda.

Na perspectiva aqui adotada, essas são considerações que podem contribuir para o debate sobre o art. 83, §4º, da LFR nestes tempos sensíveis de quebras e demissões, em que o aumento do volume de procedimentos recuperacionais e falimentares se anuncia e aproxima no horizonte.

*Willie Cunha Mendes Tavares, sócio do Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados. Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

*Bernardo Salgado, sócio do Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados. Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor convidado da Pós-Graduação em Direito dos Contratos oferecida pela PUC-Rio

*Mateus Reis, sócio do Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados. Graduado pela PUC-Rio

[1] Segundo dados divulgados pelo Serasa Experian, em abril foi registrado aumento de 46,3% na quantidade de pedidos de recuperação judicial, em comparação com os dados de março (https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/19/pedidos-de-recuperacao-judicial-e-falencia-crescem-no-pais-e-atingem-mais-as-pequenas-empresas.ghtml).

[2] Os dados, referentes ao segundo trimestre deste ano, são extraídos da PNAD Contínua, pesquisa conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE (https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/06/30/desemprego-sobe-para-129percent-em-maio.ghtml).

[3] Conforme dispõe o art. 83 da Lei Federal nº 11.101/05, daqui em diante denominada apenas, "LFR" ou "Lei".

[4] TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil: obrigações. Rio de Janeiro: Forense, v. 2, p. 171.

[5] COELHO, Fábio Ulhôa. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 238. Também assim BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005, comentada artigo por artigo. 12. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunal, 2017, p. 259.

[6] Vale destacar as lições de Carvalho Santos, quando adverte que "há certos privilégios que se não transmitem, como, por exemplo, o executivo fiscal, que somente pelo Estado pode ser exercitado. Mesmo que o Estado faça cessão de uma dívida fiscal a um particular claro que não poderá ser transmitido com o crédito o privilégio do executivo fiscal, precisamente porque trata-se de um privilégio intransferível, personalíssimo, se assim nos podemos exprimir. Importa dizer: os privilégios pessoais não são transferidos, mas os que derivam da natureza do crédito, passam, evidentemente, para o cessionário. Assim, não se transmitem os direitos acessórios de caráter pessoal, como a suspensão da prescrição, que é fundada na situação subjetiva do cedente" (CARVALHO SANTOS, João Manuel de. Código civil brasileiro interpretado: direito das obrigações. 10. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1982, v. 11, p. 342).

[7] Lembre-se, sobre a interpretação denominada teleológica, que o art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro enuncia que, "[n]a aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".

[8] TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil: obrigações, cit., p. 172-173.

[9] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, t. 24, p. 373.

[10] "Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor: I - do credor que paga a dívida do devedor comum; II - do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipotecário, bem como do terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel; III - do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte".

[11] "Art. 347. A sub-rogação é convencional: I - quando o credor recebe o pagamento de terceiro e expressamente lhe transfere todos os seus direitos; II - quando terceira pessoa empresta ao devedor a quantia precisa para solver a dívida, sob a condição expressa de ficar o mutuante sub-rogado nos direitos do credor satisfeito".

[12] A Súmula 331, IV, do Tribunal Superior do Trabalho dispõe: "O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial".

[13] STJ, REsp 1.526.092/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. em 15.03.2016.

[14] STJ, REsp 818.764/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 07.06.2016.

[15] TJSP, AI nº 0239075-48.2012.8.26.000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Des. Rel. Francisco Loureiro, j. em 27.03.2013.

[16] TJSP, AI nº 2131286-09.2019.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Des. Rel. Gilson Miranda, j. em 06.11.2019.

[17] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012, v. 2, p. 221.

[18] Se, por exemplo, a parte terceira tiver efetuado o pagamento de três credores da falida nos valores de R$ 180 mil, R$ 100 mil e R$ 50 mil, os débitos não devem ser reunidos para que, sobre eles, recaia a limitação de 150 salários. O primeiro crédito será habilitado, em parte, na classe trabalhista (até o limite de 150 salários) e, em parte, na classe quirografária (no valor correspondente ao excesso). Os dois outros créditos serão habilitados, ambos, integralmente na classe trabalhista.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.