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Em que momento as receitas dos programas de fidelidade são tributadas?

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Por Tércio Chiavassa , Mariana Monfrinatti de André e Mariana Brandão Fantini
Atualização:
Tércio Chiavassa, Mariana Monfrinatti de André e Mariana Brandão Fantini. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Os programas de fidelidade, instrumentos tradicionalmente utilizados em marketplaces e canais de compra, serão ainda mais estratégicos no cenário pós- pandemia por otimizarem a aquisição de produtos e serviços, tendendo a ser extremamente relevantes para auxiliar na recuperação de empresas afetadas pela crise, segundo dados atuais da Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização. Espera-se uma rápida retomada do comércio, e tal cenário torna importante a discussão acerca das atividades desse segmento, especialmente a definição do momento de tributação das receitas auferidas pelas administradoras de programas de fidelização.

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A atividade de fidelização de clientes ainda não é especificamente regulamentada no Brasil, de forma que não existe uma definição legal sobre a natureza jurídica dos pontos concedidos pelos programas de fidelidade. Tal indefinição, em adição ao fato de que a estruturação de cada programa pode possuir particularidades, leva à dificuldade de caracterização de um regime tributário de forma clara e precisa e, consequentemente, permite a adoção de posturas diferentes dentro do mercado e controvérsias entre contribuintes e Autoridades Fiscais.

Dentro do modelo de fidelização, as empresas gestoras dos pontos realizam operação de natureza complexa por meio da qual assumem a obrigação de liquidar passivos futuros em nome do contratante (ou seja, daquele consumidor que acumula os pontos), tornando tal obrigação, inicialmente alheia, passivo próprio (receita diferida), que ainda será efetivamente auferida pela gestora, e emitem pontos virtuais para registrar essa operação. Os pontos são, então, transferidos aos participantes do Programa que, na posição de "credores", podem determinar o momento da liquidação do passivo (ou seja, o momento de troca dos pontos por determinado benefício).

Entre as controvérsias dessa operação, destaca-se a do momento de tributação das receitas auferidas pelos programas de fidelidade. No entendimento das Autoridades Fiscais, a gestora dos pontos deveria recolher os tributos devidos no momento em que recebe o pagamento dos participantes do programa de fidelidade, ou seja, no momento do pagamento pela fidelização.

Os contribuintes, por sua vez, discordam desse posicionamento e defendem que as receitas auferidas pelas gestoras somente poderiam ser submetidas à tributação no momento de resgate do ponto e/ou quando da sua conversão em prêmio, a depender da política interna de cada programa.

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A razão de tal entendimento reside no fato de que os valores advindos da assinatura do cliente não integram diretamente a receita das gestoras de pontos, uma vez que podem ser resgatados de formas diversas e em diferentes momentos ou, ainda, sequer serem resgatados e até mesmo expirarem. Dessa forma, antes do efetivo resgate do ponto, não há segurança sobre o valor que será apropriado pela gestora como receita própria tributável.

Justamente por se tratar de um modelo de negócio sem regulamentação específica, caberá à jurisprudência estabelecer as diretrizes e garantir a tão desejada segurança jurídica. O tema, contudo, ainda não foi pacificado nos Tribunais, existindo poucos precedentes sobre o tema no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Ainda assim, somos da opinião de que a jurisprudência administrativa vigente hoje respalda o posicionamento dos contribuintes de que a receita das gestoras somente deve ser tributada no momento do resgate efetivo dos pontos.

No paradigmático caso da empresa Multiplus S.A., as Autoridades Fiscais alegaram que a gestora vende os pontos aos participantes do Programa e que os valores dispendidos com os regates dos prêmios seriam meros custos da operação. Em 2017, a 2ª Turma, 4ª Câmara, 3ª Seção do CARF, por meio do Acórdão 3402-004.146, afirmou que o "montante recebido em uma transação cuja obrigação de performance não se encontra plenamente determinada deve ser reconhecido como receita diferida, ocorrendo o reconhecimento da receita apenas quando atendidas as obrigações assumidas". Sendo assim, diante da impossibilidade de determinação prévia da conversão dos pontos, reconheceu-se que somente é possível apurar a receita efetiva da gestora - e, evidentemente, tributá-la - posteriormente ao resgate, por mais que já tenha ocorrido o ingresso dos valores.

Tal entendimento foi reiterado em 2020 pela 1ª Turma, 2ª Câmara, 1ª Seção do CARF no caso do Banco Bradesco Cartões S.A., por meio do Acórdão nº 1201-003.566, que dispõe: "se está pendente a obrigação de performance, não há que se reconhecer receita nem despesa relativas a essa transação".

No entanto, tal posicionamento não é unânime dentro do Tribunal Administrativo, visto que a 1ª Turma, 2ª Câmara, 3ª Seção do Conselho já se posicionou de forma contrária e, a nosso ver, até contraditória em relação ao mesmo contribuinte Multiplus S.A., no Acórdão nº 3201-006.137, julgado em 2019, admitindo a tributação das receitas das gestoras logo após o pagamento pelo participante do Programa.

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Em nosso entender, contudo, esse precedente, ainda que desfavorável ao contribuinte, deve ser contextualizado, visto que discorda do diferimento da tributação desde que possível "estimar com suficiente segurança" os valores futuros que serão auferidos pela gestora. Isto é, referido precedente parte do pressuposto de que as gestoras possuem instrumentos estatísticos para prever, com liquidez e segurança, o percentual dos valores arrecadados que resultará na sua receita própria, abrindo margem para discussão quanto ao conceito de "suficiente segurança" dos elementos estatísticos. Até porque, as gestoras de programas de fidelidade, assim como seguradoras, utilizam contabilidade probabilística, mas cada uma com premissas e condições particulares da sua própria operação, inexistindo fórmula exata para se determinar a segurança da estimativa exigida pelo julgado do CARF.

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Dessa forma, apesar de contrário, o precedente deve ser considerado com ponderação, uma vez que, essencialmente, adota a mesma premissa dos demais precedentes favoráveis: a de que o momento da tributação está diretamente relacionado à previsibilidade da receita efetivamente auferida pela gestora (e não dos valores que venham por ela a ser repassados).

Em síntese, apesar da complexidade da tributação das operações com pontos de fidelidade, intensificada pela falta de regulamentação específica sobre o tema, é possível utilizar a orientação hoje existente nos precedentes do CARF e defender que a tributação das receitas auferidas pelas gestoras de pontos ocorre no momento em que há previsibilidade de sua definição, o que somente ocorre no momento do efetivo resgate dos pontos.

*Tércio Chiavassa, sócio de Tributário de Pinheiro Neto Advogados

*Mariana Monfrinatti de André, associada de Tributário de Pinheiro Neto Advogados

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*Mariana Brandão Fantini, associada de Tributário de Pinheiro Neto Advogados

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