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Eleições em meio à pandemia são exemplo de institucionalidade democrática

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Por Fernando Neisser e Paula Bernardelli
Atualização:
Fernando Neisser e Paula Bernardelli. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A grande notícia do Direito Eleitoral em 2020 foi ter sobrevivido à pandemia. Não só isso, mas como protagonista de um raro exemplo de institucionalidade, em meio aos lamentáveis episódios em que o Estado mostrou sua face cruel e distante da realidade.

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Aprendemos, historicamente, a admirar o estoicismo daqueles que, diante da catástrofe, conseguem seguir suas vidas, passando o recado de que, por difícil que seja o momento, existe um amanhã e é preciso preservar as bases da sociedade até lá. O "Blitz Spirit" dos ingleses diante dos bombardeios a Londres é um epítome deste sentimento.

No Brasil deste ano pandêmico, seguir a vida significou aferrar-se à ideia de que era essencial preservar a democracia, insistindo na realização de um de seus símbolos mais importantes: as eleições.

O exemplo de institucionalidade veio do salutar diálogo entabulado entre o Tribunal Superior Eleitoral e o Congresso Nacional, que pactuou às claras a emenda constitucional que permitiu postergar as eleições municipais, de modo a ganhar tempo para desenvolver os protocolos sanitários necessários à sua realização, sem postergar os mandatos dos atuais prefeitos e vereadores.

A liderança do TSE no processo prosseguiu com a inédita iniciativa cívica e logística que, em tempo recorde, reuniu empresas e instituições, como a Fiesp, angariando e distribuindo em todo País os equipamentos de proteção que permitiram, tanto quanto possível, a normalidade e segurança das eleições de novembro.

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Mas nem só de pandemia viveu o Direito Eleitoral em 2020. O que muitos víamos como o grande problema na área até então - a onda de desinformação que varreu as democracias nos últimos anos - ganhou fôlego com as gripezinhas e cloroquinas.

E coube ao TSE, mais uma vez, o saudável protagonismo no enfrentamento do fenômeno, em um esforço recompensado pela aproximação do WhatsApp com a Justiça Eleitoral. De uma postura de distanciamento, partiu-se para o engajamento ativo na pauta, decorrente, ao menos em parte, da perda reputacional de quem recebeu o carimbo de vilão em 2018.

Finalmente, o TSE pareceu acordar para a necessidade de uma política de comunicação clara, transparente e direcionada à massa da população, construída em linguagem acessível e conduzida com o auxílio de figuras públicas com relevo na sociedade. A disputa da pauta na sociedade não se resolve com bravatas ou agindo como avestruz, esperando que o problema desapareça.

A participação política de grupos vulneráveis esteve também no foco do Direito Eleitoral, confirmando um movimento crescente dos últimos anos. A consolidação da vedação às fraudes no preenchimento das cotas ladeou o debate com a necessidade de encarar o racismo estrutural que alija pessoas negras de representação política.

Inicialmente preocupado com as mudanças de última hora nas regras do jogo - postura que merece o aplauso de quem se acostumou com os constantes solavancos nas normas eleitorais - o TSE respondeu à consulta pela necessidade de atribuição proporcional de recursos públicos - dos fundos partidário e eleitoral - às candidaturas de pessoas pretas e pardas. Avançando na questão, o STF, em ação relatada pelo ministro Lewandowski, decidiu pela imediata aplicação da regra.

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Independentemente das dificuldades para sua observância em tão pouco tempo, é indiscutível que chegou o momento de reconhecer, com clareza, que vidas negras não apenas importam, mas que somente podem se fazer representar na política se dispuserem de meios para tanto.

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Ao tratarmos de alterações de última hora, não se pode esquecer da entrada em vigor, após manobra parlamentar no Senado Federal, da Lei Geral de Proteção de Dados, a poucas semanas do início da propaganda eleitoral.

Ainda que essencial para mitigar os abusos praticados por plataformas e empresas com as informações que circulam em grandes bancos de dados, não havia parâmetros para assegurar como as novas regras deveriam ser implantadas no âmbito eleitoral. Parece certo que 2021 será o momento para debater e decidir como os princípios da LGPD podem ser incorporados ao mundo das eleições, preservando a possibilidade de que as candidaturas dialoguem com eleitoras e eleitores, fim último das campanhas.

As campanhas, aliás, seguiram o caminho que lhes era possível, prosseguindo na migração das ruas para as redes - o que se tem observado nos últimos anos. É bem verdade que o acesso no Brasil não é universal, mas havia pouca alternativa para entabular o diálogo com o eleitorado que não pela internet.

E foi com a internet que surgiu a mais criativa ideia do ano para as campanhas, os eventos virtuais de arrecadação de recursos com apresentações artísticas. Duas candidaturas, de Porto Alegre e São Paulo, discutiram na Justiça Eleitoral o direito de realizar uma live com Caetano Veloso para custeio das atividades eleitorais.

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Depois de negativas na primeira e segunda instâncias, o TSE, quase por unanimidade, permitiu o evento, abrindo portas para que as campanhas busquem se viabilizar financeiramente nas próximas eleições.

Tendo colaborado com a construção da tese, não se pode deixar de frisar o quão incongruente seria impedir uma iniciativa que tem a potencialidade de destravar as tão desejadas doações cívicas, de pequeno valor, reduzindo a demanda por fundos públicos.

Não é possível concluir o balanço do Direito Eleitoral neste ano sem lançar olhos a outro processo eleitoral, de relevância mundial, ocorrido em 2020. O vexame das eleições norte-americanas, com apurações que se prolongaram por semanas, abrindo espaço a toda sorte de teorias conspiratórias, serve para reafirmar a qualidade do nosso sistema de votação e a necessidade de contar com uma autoridade eleitoral independente dos interesses político-partidários.

A totalização dos votos no Brasil não transcorreu sem uma dose de emoção. Premida pela redução de seu orçamento, a Justiça Eleitoral buscou otimizar recursos, concentrando o processo no TSE. O atraso na divulgação dos resultados, de pouco menos de duas horas, não pode manchar o excepcional trabalho de milhares de servidoras e servidores da Justiça Eleitoral, que se empenham diariamente para a construção de um modelo seguro e estável de aferição da vontade do eleitorado. Mais do que isso, poucas vezes no Brasil viu-se uma instituição tão prontamente explicar seus problemas, com dados claros expostos ao escrutínio público.

Lamentavelmente, não foi essa a leitura de parte significativa da imprensa. Se é sabido que notícia boa não vende jornal, também é verdade que as instituições democráticas - a mídia inclusive - devem zelar pela preservação da própria democracia. Os ataques e vazamentos de dados observados no dia do primeiro turno foram vinculados a uma estratégia concatenada de desinformação, buscando desacreditar nosso sistema de votação e a própria Justiça Eleitoral.

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Neste cenário, o foco dado a questões logísticas da totalização pareceu dar destaque aos tropeços do corredor, sem perceber que, ao final, a maratona foi vencida. Pior, este tipo de cobertura serve de combustível para os teóricos da conspiração, que parecem querer copiar o modelo norte-americano de negação do resultado das urnas e de ataque institucional.

Que venha 2021, menos emocionante - espera-se - que 2020, e permita à sociedade brasileira e ao Congresso Nacional debruçarem-se sobre as regras eleitorais, na constante busca por seu aperfeiçoamento.

*Fernando Neisser, doutor pela Faculdade de Direito da USP, presidente da Comissão de Direito Político e Eleitoral do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo), sócio do escritório Rubens Naves Santos Jr Advogados

*Paula Bernardelli, advogada eleitoralista do escritório Rubens Naves Santos Jr Advogados; coordenadora de comunicação da Associação Visibilidade Feminina e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP)

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