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Elas insistem e me fazem mãe

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Por Fernanda Zacharewicz
Atualização:
Fernanda Zacharewicz. FOTO: FÁBIO MUNIZ Foto: Estadão

O Dia das Mães se aproxima após completarmos um ano com toda a família em casa, em quarentena. Ainda que por vezes as escolas tenham reaberto, nunca o convívio com nossos filhos foi tão intenso.

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Freud apontou o filho como a realização da mulher. Realmente: eu era pura realização quando, durante semanas, para acordar minha filha mais nova para a aula online, eu tinha que pular o São Bernardo gigante e a porca de estimação que faziam guarda em frente à barraca de camping montada no meio da sala. Enquanto ela resmungava arrastando-se para fora do abrigo - construído para lidar com o horror da pandemia, com a possibilidade de morte explicitamente concreta -, eu buscava inventar uma ordem que nos guiasse até o final do dia. Não consigo precisar quando a barraca foi recolhida e ela voltou para o quarto. Talvez tenha sido mais ou menos ao mesmo tempo em que eu considerei o camping na sala algo normal, num mundo em que precisávamos criar novos parâmetros.

Ouvi de alguns o brilhante conselho de aproveitar a oportunidade para cozinhar com minhas filhas. Cada vez que essa sugestão aparece, elas respondem com orgulho: "Minha mãe já queimou sopa". É verdade, já queimei sopa. Já passei um tempo proibida de ligar o fogão se estivesse sozinha em casa. Cozinhar estava fora de cogitação.

Minha filha maior plantou tomates, a menor pintou todos os interruptores da casa. A disposição dos móveis mudou continuamente, aprendi a me certificar antes de achar que me sentaria numa poltrona - ela poderia não estar mais lá, cômodos mudaram de função mais de uma vez. Lixamos móveis, montamos armários. Tudo na mais perfeita ordem caótica. Duvido de que o processo tenha terminado. Quando olho para a sala de hoje, ainda vejo com saudade as meninas entrando, deixando a mala da escola na mesa da sala e indo para a cozinha almoçar, enquanto eram lembradas de lavar as mãos. Esse movimento não existe mais e não vai mais existir. Elas cresceram e, quando voltarem a frequentar a rua livremente, terão outras agendas. Aquelas vivências foram interrompidas. Mas elas inventaram outras.

O arrastar dos móveis, o construir, desconstruir e construir de outro jeito me mostraram que, além do caos e das paredes que precisam urgentemente de nova pintura, elas souberam lidar com a realidade que se impôs. Souberam forçar a existência da vida em tempos de morte, mostraram que são capazes de experimentar uma e outra vez, são capazes de criar quantas vezes forem necessárias.

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Sou daquelas mães que enche a agenda dos filhos: basta pensar que gostariam de fazer tal coisa e estão lá matriculadas. Não acho que vão saber mais ou que assim se determine o sucesso ou fracasso delas; matriculo-as, pois, acredito em que a possibilidade de experimentação é essencial, algo de que achei que a pandemia havia nos privado. Mas elas me mostraram o contrário. Algo disso está nelas. E elas sabem quando usar. E talvez ser mãe seja disponibilizar ferramentas para que nossas crias consigam manuseá-las nas diversas situações que a vida apresenta. Disso vai depender suas existências.

Neste Dia das Mães, elas ressignificam para mim a função materna, escancarando que, muito além das lembranças dos desastres culinários, sou a mãe que ensina que se recomeça, que se insiste, que a vida é movimento em qualquer situação.

*Fernanda Zacharewicz é psicanalista, doutora em Psicologia Social pela PUC/SP, editora da Aller Editora

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