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Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

E se Trump fosse o presidente do Brasil?

Por João Linhares
Atualização:
João Linhares Júnior. Foto: ARQUIVO PESSOAL

O mundo assistiu perplexo, esta semana, à invasão do Capitólio estadunidense, no dia em que Joe Biden seria certificado presidente eleito dos EUA, quarta-feira pretérita, 6/1. As imagens propaladas ao vivo evidenciaram uma cena surreal, inacreditável e bastante perturbadora: pessoas morreram, gabinetes parlamentares foram saqueados e os debates e votação dos representantes do povo foram interrompidos por horas. Tudo isso após o presidente Trump ter provocado, em redes sociais, a tomada do Parlamento e a insurreição contra o resultado do pleito eleitoral que, segundo ele, teria sido fraudado, malgrado não tenha apresentado nenhuma prova, sequer mínima, de tal ilação.

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Muitos dos insurretos trajavam camisetas em apologia ao nazismo, com alusão ao campo de concentração de Auschwitz, estavam armados, usavam chapéus com chifres, peles de urso, cajados e implantaram bombas que foram encontradas espalhadas em Washington e no próprio edifício dominado pela multidão de desordeiros e vândalos. A polícia foi ineficiente e o caos instalou-se momentaneamente.

Agora, debatem-se nos EUA os resultados para o dirigente, ou seja, para quem incentivou a turba e incitou os crimes perpetrados contra o cerne da democracia daquele país, sobretudo conspiração sediciosa. Uns se referem à 25ª Emenda à Constituição, o que vem sendo repelido pelo vice-presidente Pence, e outros ao processo de impeachment.

Sem maiores elucubrações sobre a realidade americana, pus-me a refletir se Trump fosse o presidente do Brasil e tivesse agido de forma idêntica aqui. Quais seriam as possibilidades e consequências sob o nosso prisma jurídico? E fiquei assaz preocupado, porquanto parece não existir, no nosso ordenamento constitucional, uma resposta pronta e adequada para uma pretensa ação imediata, que tenha o condão de resolver, de chofre, lepidamente, uma questão dessa envergadura.

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Donald Trump. FOTO: Carlos Barria/REUTERS Foto: Estadão

Deveras, a Constituição Federal (CF) preconiza que é crime de responsabilidade do Presidente da República a prática de atos que atentem contra o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação (art. 85, inciso II). Nesse caso, o chefe do Poder Executivo é submetido a um processo de impedimento pormenorizado na Lei n. 1079/1950, que é lento e burocrático, não atendendo às necessidades de, em tese, afastar-se, liminarmente, o presidente.

Com efeito, o presidente do Brasil será suspenso de suas funções nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ou, nos crimes de responsabilidade, depois da instauração do processo pelo Senado Federal (art. 86, § 1º, incisos I e II, da CF). Tais medidas também são vagarosas, demandando meses para ser implementadas. E se o caso for urgentíssimo?

Uma gravíssima comoção social e institucional apta a gerar Estado de Defesa ou mesmo Estado de Sítio (art. 136 e art. 137, CF) somente poderia ser invocada, nos termos da Carta Política, pelo próprio Alcaide-Mor (interessado direto na questão), porquanto ostenta iniciativa privativa para fazê-lo, segundo baliza insculpida no art. 84, inciso IX, da Lei Fundamental.

E para agravar o quadro hipotético trazido a lume, convém destacar que o Presidente da República não está suscetível à prisão, enquanto não houver sentença condenatória e tampouco pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções (art. 86, § 3º e 4º, CF).

Ora, em tese, havendo a necessidade premente de arredar-se, de modo impendente, o Presidente da República de suas funções, nota-se que não há previsão constitucional precisa e apta para tanto, de tal arte a gerar insegurança jurídica e a criar um vácuo legislativo, dando-se ensanchas, no exemplo concebido, à ruptura institucional, mediante o acionamento das Forças Armadas, por iniciativa de qualquer dos Poderes. Ocorre que elas estão sob a autoridade suprema do Presidente da República (art. 142, CF) e a medida tornar-se-ia, além de muito periclitante sob o enfoque da manutenção do arranjo democrático, identicamente difícil de implementar-se contra o Comandante Supremo, sem que se descambe para um golpe de Estado.

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A invasão do Congresso Nacional, nas circunstâncias vislumbradas nos EUA, ou a recusa do resultado de eleições livres e proclamadas legítimas pela Justiça Eleitoral ou STF, redundaria, no Brasil, na invocação, pelo menos, dos delitos vaticinados nos artigos 17 e 18 da Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7.170/1983), que rezam: "Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito. Pena: reclusão, de 3 a 15 anos. Parágrafo único.- Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até a metade; se resulta morte, aumenta-se até o dobro." ou "Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados. Pena: reclusão, de 2 a 6 anos.", tudo sem embargo da aplicação do crime de organização criminosa armada (artigo 2º, § 2º e § 3º, da Lei n. 12.850/2013), cuja sanção é de 3 a 8 anos de reclusão e multa, com aumento até a metade por uso de arma de fogo.

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Essa contextura revela a necessidade do Congresso Nacional perscrutar o tema e talvez emendar a Constituição para prever, em situações excepcionais, como se daria o afastamento imediato do Presidente da República, assegurando-se, todavia, o contraditório diferido e o controle da juridicidade do ato pelo Poder Judiciário/STF.

Outrossim, não se coaduna com a República, fundada no postulado axiológico da igualdade de todos perante a lei, vedar-se a prisão do Chefe do Poder Executivo Federal em todos os casos, até que haja decisão condenatória. Urge mitigar essa regra para estabelecer o primado da legalidade e da isonomia, no plano teórico, possibilitando-se a imediata constrição de quem venha a ultrajar valores democráticos comezinhos e imprescindíveis ao Estado de Direito, contra quem quer seja.

Felizmente, essa é apenas uma conjectura e Trump não é o presidente do Brasil. Mas, e se fosse?

*João Linhares Júnior, promotor de Justiça do Ministério Público de MS. Mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona (Espanha). Pós-graduado em Direito Constitucional - Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais pela PUC - RJ. Eleito integrante da Academia Maçônica de Letras de MS

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