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É preciso coragem para romper com as práticas que atrasam o nosso país

Viver um ano no Reino Unido estudando, em meio a pandemia, me fez entender mais a realidade do Brasil - ou, pelo menos, colocá-la em perspectiva. Além dos inúmeros aprendizados e reflexões acadêmicas, pude conviver com colegas do mundo inteiro e conhecer um pouco mais a realidade de diferentes países. Países desenvolvidos como Reino Unido, Canadá e República Tcheca, mas também, e especialmente, países que enfrentam graves crises políticas e/ou humanitárias, como Venezuela, Myanmar, Israel, Palestina e Afeganistão. Entre os principais aprendizados, três me chamaram a atenção como fatores essenciais para o bom funcionamento de qualquer país - e o Brasil precisa deste gabarito.

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Por Luana Tavares
Atualização:

O primeiro deles é que a democracia e a liberdade são princípios fundamentais na construção da sociedade. Diversos governos no mundo todo, incluindo o Brasil, têm criado formas de cercear a liberdade de expressão, direitos individuais e questionam os princípios democráticos flertando com o autoritarismo. O caso da Venezuela, por exemplo, é extremamente delicado. Desde 2019 o país está dividido entre o comando do autodeclarado Presidente interino, Juan Guaidó, e de Nicolás Maduro, que teve sua última eleição anulada pelo Parlamento venezuelano em 2018 por fraude, porém, detém o controle de boa parte dos grupos militares e não deixou totalmente o poder do país.

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No final, quem paga a conta mais dura de tamanha fragilidade democrática é a população. Desde 2015, as seguidas crises política, econômica e humanitária, geraram uma situação de pobreza generalizada no país e provocaram o êxodo de mais de 5 milhões de venezuelanos (51% jovens entre 19 e 25 anos). Sem instituições democráticas que assegurem os direitos básicos da população, simplesmente, não há vida, não há sociedade.

Luana Tavares. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Entretanto, para que haja democracia, é necessário encorajar e desenvolver mais lideranças políticas capazes de confrontar as práticas antigas e substituí-las. E este é o segundo aprendizado. Lideranças extremistas e populistas encontram espaço no vácuo deixado por líderes virtuosos que, na repulsa pelo sistema atual, preferem se afastar a arriscar suas biografias. Países como Israel e República Tcheca tiveram recentemente que criar coalizões improváveis de extrema direita e extrema esquerda para remover líderes autoritários do poder. Tal cenário só reforça o quanto a renovação de práticas e valores é urgente. O ser humano é movido por incentivos e exemplos, pois eles são capazes de moldar atitudes individuais e coletivas. Para avançarmos como sociedade é necessário que mais lideranças íntegras, competentes e corajosas ocupem os espaços de poder e sejam verdadeiros exemplos para a população.

No Brasil, por exemplo, estas lideranças já existem e estão espalhadas em diversos setores (privado, terceiro setor, academia). Porém, precisam ser desenvolvidas e encorajadas a saírem dos bastidores e somarem no esforço de romper com as práticas que atrasam o nosso país.  Iniciativas como o RenovaBR, RAPS e Vamos Juntas, que trabalham para capacitar e incentivar lideranças políticas, são essenciais para criar uma rede de proteção, facilitando a entrada destas pessoas nos espaços de decisão. Afinal, o populismo, autoritarismo e a corrupção são capazes de minar todo o sistema e criar entraves para novos nomes, especialmente os das mulheres. Outro efeito colateral crítico desta tríade do atraso é, claro, a dificuldade de focar na prestação de serviços que beneficiem a população em áreas essenciais, como na educação, saúde, saneamento, segurança, no serviço social e tantos outros.

E por falar em serviços públicos, chegamos ao terceiro e último aprendizado. É urgente termos uma gestão pública mais ágil e próxima do cidadão, de modo a simplificar a sua vida e garantir acesso a serviços públicos de qualidade. A pandemia do covid-19 escancarou o atraso digital do Brasil em diversas áreas. Na educação, por exemplo, 1 em cada 3 alunos teve problemas na conexão à internet durante a pandemia no Brasil, além da ausência de equipamentos apropriados, segundo levantamento da Unicef. A crise trouxe a urgência de acelerarmos a transformação digital de nossas sociedades, da nossa economia e do nosso governo.

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No Reino Unido, por exemplo, em menos de um ano o sistema público de saúde, o chamado NHS (National Health System), saiu de 5% de usuários utilizando a saúde digital em 2020 para 50% em 2021. São 45 aplicativos e serviços de saúde-eletrônica disponíveis, incluindo serviços de referência, suporte, aconselhamento, maternidade e saúde infantil, farmácias online, tele-saúde e monitoramento do bem-estar. Somente a plataforma de 'intercomunicação entre profissionais da saúde' (NHS Digital Workplace) já atinge 1,3 milhão de usuários, sendo que em 6 meses substituiu 14,5 milhões de chamadas telefônicas e hospedou mais de 32 milhões de reuniões virtuais, liberando 2,9 milhões de horas dos profissionais da saúde.

No Brasil, há experiências que mostram um movimento na direção de um governo mais digital. Hoje, segundo dados do governo federal, dos quase 4,5 mil serviços oferecidos pela administração pública para cidadãos e empresas, cerca de 3 mil já possuem trâmite totalmente digital e podem ser acessados pelo computador ou por smartphones. No entanto, há um desafio cultural enorme, além da falta de acesso à internet banda larga entre a população de baixa renda e, também, à educação digital. Entender a realidade do país e nossas limitações são fatores essenciais para avançarmos na direção correta. O brasileiro tem pressa, e o estado deve facilitar sua vida e não o contrário.

Um dos caminhos que tem sido percorrido por governos no mundo todo para acelerar este processo é trazer o setor privado para atuar em parceria com o poder público. Parcerias Público-Privadas, Organizações Sociais, Social Bonds e, também,  as chamadas GovTechs. As GovTechs são startups que possuem tecnologias destinadas para auxiliar o governo com uma série de soluções voltadas para serviços públicos. Os brasileiros têm veia empreendedora e as startups por aqui surgem com ideias impressionantes. O próprio relatório Startup Ecosystem Rankings 2020 promovido pela StartupBlink aponta o Brasil como o 20° colocado dentro do ecossistema de startups, subindo 17 posições com relação ao relatório anterior. Há um potencial enorme a ser explorado para acelerar a nossa digitalização!

Além destes três aprendizados, trago de volta ao Brasil a certeza de que temos as bases necessárias para defender nossa democracia, encorajar lideranças reais e garantir serviços de qualidade para a população. Podemos fazer muito se reforçarmos nossa capacidade de diálogo e fomentarmos uma cultura aberta à inovação, tanto de valores, quanto de práticas. Nós, como elites intelectual, econômica e política, temos a responsabilidade de focar neste gabarito e reconstruir a sociedade com base em princípios pelos quais possamos nos orgulhar nos próximos anos. Chegou o momento de acabarmos com o silêncio dos bons.

*Luana Tavares é mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Oxford, com MBA - Master in Business Administração pela Fundação Getúlio Vargas - FGV-SP, licenciada em Publicidade e Propaganda pela Universidade Estácio de Sá e especializada em desenvolvimento de lideranças pela Harvard Kennedy School

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