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Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

É necessário se antecipar ao feminicídio

Por Vanessa Mateus
Atualização:
Vanessa Mateus. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O brutal assassinato da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, assassinada no Rio de Janeiro por seu ex-marido na véspera de Natal, na presença de suas filhas, nos deixou a todos estarrecidos e frente a um dado alarmante, infelizmente já conhecido: o Brasil ostenta a marca de quinto país que mais mata mulheres no mundo. Números do Núcleo de Estudos da Violência da USP e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que em 2019 houve uma escala crescente de feminicídios e apontam que 1.314 mulheres foram mortas pelo simples fato de serem mulheres. Uma mulher a cada 7 horas, em média.

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O mais estarrecedor é que Viviane não foi a única mulher assassinada no Natal na frente dos filhos e familiares. Thalia, Loni, Anna Paula, Aline e Evelaine também foram assassinadas, em circunstâncias parecidas, pelas mesmas razões. O fato está longe de ser isolado e decorre de fatores sociais, históricos e culturais. Curiosamente, já - ou ainda - não choca alguns (ou muitos).

O Poder Judiciário e demais integrantes do sistema de Justiça reagiram de forma contundente em razão desses fatos: STF (Supremo Tribunal Federal), CNJ (Conselho Nacional de Justiça), entidades de classe, Colégio de Presidentes de Tribunais de Justiça, presidentes de Tribunais, Defensoria Pública, Ministério Público, OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

Algumas críticas surgiram. Diziam que precisávamos ver uma morte de alguém poderoso para agirmos. Mas a crítica não é justa. Sabemos que ainda temos um longo caminho a percorrer, seja na capacitação dos nossos integrantes, seja na estruturação de nossas unidades. Mas não podemos ignorar o muito que já foi feito, e muito antes da morte de Viviane.

A Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, considerada uma das melhores leis do mundo acerca da matéria, operou verdadeira transformação no tratamento dos delitos praticados contra mulher no âmbito doméstico. Entre seus grandes feitos, criou a possibilidade de aplicação de medidas protetivas em favor da mulher e dos filhos do casal. Pouco depois, em 2009, foi instalado o primeiro Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher, em São Paulo, à época sob minha responsabilidade.

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No ano de 2015, a Lei 13.104 trouxe para o Código Penal a figura do feminicídio, como uma forma de agravamento da pena. Durante a pandemia da Covid-19, atentos à escalada da violência, CNJ e AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) lançaram a campanha Sinal Vermelho contra Violência Doméstica, com objetivo de ampliar os canais de denúncia e envolver toda a sociedade civil no combate à violência familiar por conta do gênero. A campanha foi imediatamente abraçada pelas entidades de classe e pelos Tribunais de Justiça e espalhada por todo Brasil.

No sábado imediatamente seguinte ao brutal assassinato (26/12), o Grupo de Trabalho do CNJ fez uma reunião extraordinária e apontou algumas medidas urgentes para mudar a legislação e ampliar a proteção à mulheres, como a tipificação dos crimes de stalking (perseguição reiterada e obsessiva) e a ampliação das penas dos crimes de lesão corporal, injúria e ameaça e, ainda, das possibilidades de decretação de prisão preventiva do agressor.

O Poder Judiciário vem agindo com celeridade, concede rapidamente as medidas protetivas às vítimas de violência e integra campanhas de conscientização social. Cria programas de recuperação das vítimas, recuperação dos agressores, recuperação familiar. Muito foi feito. Mas ainda há muito a fazer. E a tese da legítima defesa da honra, por exemplo, não pode nunca mais ser admitida pelo Poder Judiciário.

Não nos conformamos nem nos resignamos com as milhares de mortes de mulheres que temos visto acontecer nos últimos anos. Mas temos o direito de gritar por Viviane: ela é uma de nós! Sua morte corta um pedaço da nossa carne e pudemos sentir, todos nós, uma parcela da dor que ela sentiu!

Não esperamos a morte de Viviane para começar a agir, mas devemos usar o momento para prosseguir na caminhada, embora estejamos extenuadas. Afinal de contas, depois de tanto trabalho, seis mortes numa noite de Natal?!

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Combater o feminicídio é um desafio. Nos últimos dias uma discussão foi travada no meio acadêmico e jurídico: o Estado é leniente com os delitos praticados no âmbito doméstico ou é leniente com os delitos de forma geral? Prende pouco ou prende muito? Prende mal? Toda discussão é válida e o caminho a ser percorrido é longo.

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O feminicídio é endêmico, o machismo é estrutural e todas essas mortes - todas, sem exceção - decorrem do mesmo fato de o homem não aceitar que a mulher escolhesse dizer não. A liberdade da mulher e o direito de escolha ainda incomodam, ainda são desrespeitados. É preciso operar uma mudança profunda na sociedade, na educação, na cultura. É preciso que os agressores sejam submetidos a eventos de conscientização, para que o fato não volte a ocorrer. É preciso que as crianças cresçam num mundo de igualdade. É preciso que a sociedade civil faça sua parte, denuncie, acolha, não se cale diante da violência. É preciso que deixe de ser um assunto privado e passe a ser tratado como assunto de interesse geral e provoque reações em todos nós. Mas, além disso, também é necessário cuidar do tratamento penal àqueles que hoje praticam delitos.

O feminicídio é resultado de um caminho de violência percorrido; ele deixa rastros, dá sinais de que irá ocorrer. Antes da morte, a mulher normalmente é submetida a outros atos de violência, tais como ameaças, injúrias, violência psicológica, vias de fato, lesões corporais. O caso de Viviane é emblemático: ela já havia feito o registro de lesão corporal e ameaça contra o ex-marido e recebeu resposta do Judiciário. Mas pouco pode ser feito contra o agressor nesse caminho que desagua no feminicídio, dadas as penas brandas previstas para tais ações e as dificuldades legais para adoção de medidas mais severas, como a prisão do agressor. O Poder Judiciário pode até enxergar a ocorrência de um fim trágico, mas tem suas mãos amarradas pela lassidão da lei.

Neste sentido, é louvável a iniciativa da AMB que, em meados de dezembro, ampliando o contato com o Poder Legislativo e junto ao Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), propôs ajustes para lapidar o Projeto de Lei 1.369/2019, que criminaliza a perseguição. A proposta é que o PL, de autoria da senadora Leila Barros (PSB-DF), resulte na implantação de medidas no combate à violência contra a mulher e permita ao juiz aplicar medidas mais efetivas para coibir a prática criminosa.

Como mulher e magistrada, estou convencida de que compreender as desigualdades que levam a mortes violentas é essencial para a aplicação da lei e, principalmente, para uma atuação preventiva. O combate ao feminicídio é uma questão civilizatória, de educação, de cidadania, de mudança de comportamento. E todos temos uma parcela de responsabilidade nessa missão: o Judiciário, com olhar mais atento a essas diferenças; a sociedade, não se calando perante a agressão; e o legislador, atuando para que as leis assegurem o efetivo afastamento do agressor da vítima.

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Só assim poderemos evitar os trágicos desfechos que marcaram o caso da juíza Viviane, de mais cinco mulheres assassinadas neste Natal e das milhares de vítimas de feminicídio.

*Vanessa Mateus é juíza de Direito e presidente da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis)

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