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E depois da CPI?

Por Júlia Alexim
Atualização:
Júlia Alexim. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O relatório final da CPI da Pandemia indiciou 81 pessoas por infrações diversas. O presidente da República foi indiciado pelos crimes de responsabilidade consistentes em violação a direitos sociais e atuação incompatível com o a dignidade, a honra e o decoro do cargo, pelos crimes comuns de prevaricação, charlatanismo, epidemia com resultado morte, infração a medidas sanitárias preventivas, emprego irregular de verba pública, incitação ao crime e falsificação de documentos particulares e por crimes contra a humanidade nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos.

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A Comissão Parlamentar de Inquérito, instrumento de investigação e controle da Administração Pública, tem competências investigativas similares a de autoridades judiciais, mas não tem poder para punir os investigados. Cabe à CPI elaborar um relatório e comunicar o resultado de suas apurações às autoridades competentes para processarem e julgarem as infrações apontadas pela comissão parlamentar. É por isso que as perguntas que, inevitavelmente, acompanham a divulgação do relatório da comissão são: o que vem agora? Será que tudo isso vai dar em nada?

Essas perguntas, em geral, têm sido respondidas de forma incompleta, com foco no curto prazo e nas eleições de 2022. Nem todas as respostas e possíveis consequências do relatório da CPI serão conhecidas até 2022. Pelo contrário, a maior parte dessas respostas e consequências, se ocorrerem, será demorada. É muito cedo para dizer o que irá acontecer, mas, para que tudo não termine em pizza, é essencial que sejam adotadas perspectivas e estratégias também de longo prazo.

O relatório da CPI tem três destinatários imediatos. O primeiro deles é o presidente da Câmara dos Deputados, que é competente para determinar a abertura de impeachment com relação aos crimes de responsabilidade praticados pelo presidente da República e por ministros de Estado. Embora chamados de crimes, os crimes de responsabilidade não se confundem com as infrações de natureza penal. São, na verdade, infrações político-administrativas que devem ser processadas e julgadas em procedimento de impeachment, perante o Congresso Nacional. A condenação por crimes de responsabilidade pode acarretar a perda do cargo público e a inabilitação para o exercício de funções públicas pelo período de oito anos. A instauração de um procedimento de impeachment seria a resposta mais rápida aos resultados da CPI e a que teria maior e mais direto impacto nas eleições do ano que vem. O presidente da Câmara dos Deputados, porém, já afirmou expressamente que não tem intenção de determinar o início de um processo de impeachment contra o presidente da República ou qualquer de seus ministros.

O segundo destinatário do relatório é o Ministério Público, incluindo-se aí o Procurador-Geral da República, competente para investigar e oferecer denúncia pelos crimes comuns praticados pelo presidente da República. Os crimes comuns, diferentemente dos crimes de responsabilidade, são infrações de natureza penal, caracterizados por serem sancionados com penas de prisão (ainda que, eventualmente, essas penas possam ser substituídas por outras alternativas).

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Coloca-se, então, o medo de que o PGR, abertamente alinhado com o Governo, mantenha a inércia que marcou sua atuação ao longo da pandemia. No médio e longo prazo, contudo, pode ser que a decisão acerca de eventual processo contra Jair Bolsonaro não caiba a Augusto Aras.

Enquanto no exercício da função, o presidente da República só pode ser processado por crimes comuns praticados no curso do mandato se denunciado pelo procurador-geral da República e se a acusação for admitida pelo voto de dois terços da Câmara dos Deputados. Ocorre que as investigações criminais e a atuação do Ministério Público não seguem o tempo rápido da política, seguem o compasso bem mais lento da Justiça criminal.

A inércia de Augusto Aras, portanto, pode levar a que Bolsonaro só venha a ser processado e julgado daqui a alguns anos, certamente depois de 2022. Vale lembrar que, na atual interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal às normas acerca do foro privilegiado, uma vez fora da Presidência, Bolsonaro perde esse foro e poderá, portanto, ser processado por membros do Ministério Público e julgado por juízes de primeira instância.

Para entender a temporalidade da Justiça criminal, basta lembrar que a CPI do Mensalão apurou os fatos em 2005 e a ação penal referente a esses fatos foi iniciada em 2007, dois anos depois. Fernando Collor foi absolvido na ação penal que envolvia os mesmos fatos que provocaram seu processo de impeachment 22 anos depois de seu afastamento da Presidência, em clara demonstração de que a Justiça penal sempre tarda e frequentemente falha.

O desenrolar de investigações e ações penais é sempre um processo de longo prazo, enquanto a permanência de Augusto Aras na PGR é de curta duração. Aras pode correr e arquivar as investigações. Ainda que ele faça isso, basta que surjam novas provas para que, no futuro, essas investigações sejam reabertas por outras autoridades em outra conjuntura política. Tendo em vista que há ainda muito a ser revelado sobre a atuação do presidente da República, seus ministros e outros agentes na pandemia, o surgimento de novas provas em um futuro próximo ou mais distante, é bastante provável.

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O terceiro destinatário do relatório da CPI é o Tribunal Penal Internacional, competente para apurar crimes contra a humanidade. O tempo de atuação do TPI é também longo. Augustin Bizimungu, ex-comandante do Estado-Maior do Exército ruandês, acusado de genocídio pelo assassinato de 800 mil pessoas em Ruanda em 1994, foi condenado pelo TPI em 2011. Ante Gotovina, acusado de crimes contra a população sérvia, praticados em 1995, foi condenado pelo TPI também em 2011.

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É preciso, portanto, visão de longo prazo com relação aos efeitos que podem advir das investigações acerca das ações de agentes do Governo federal durante a pandemia de Covid-19. Pensar nessas investigações como instrumentos para produzir efeitos de curto prazo, tendo no horizonte as eleições de 2022, será prova de falta de perspectiva histórica.

Essas investigações e outras que delas derivarem e todos os documentos e decisões judiciais que elas vierem a produzir não são apenas medidas necessárias para a obtenção da condenação criminal de pessoas específicas. São também documentos de memória acerca da forma de atuar do Estado Brasileiro e das vítimas dessa atuação. Rememorar as vítimas é também uma forma de fazer justiça. Estratégias de curto prazo com finalidades eleitorais podem nos levar a uma solução apressada e fundada nas necessidades imediatas daqueles que, hoje, detêm poder político. Essas soluções - como já vimos tantas vezes antes - tendem a ser consubstanciadas na combinação que nos impede de apreender nosso passado e, com essa apreensão, transformar nosso presente: impunidade e esquecimento.

*Júlia Alexim, sócia do escritório Melaragno, Pádua & Alexim Advogados Associados

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