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Do que eles têm medo?

O abuso de autoridade entrou em pauta de discussão apenas no início de 2016. Vários atropelos ainda ocorrem tanto na confusão entre o conteúdo dos dois projetos (o do Senado, nº 280/2016, atualmente tramitando como 85/2017 e o da Câmara, como 4850-C/16) quanto nas críticas sobre o suposto potencial "inibidor" de uma nova lei de abuso de autoridade com relação ao combate à corrupção. É necessário compreender a diferença entre os projetos e como uma alteração na legislação defasada pode realmente afetar ou reduzir o trabalho de uma justiça criminal.

Por Fabrício de Oliveira Campos e Conceição Aparecida Giori
Atualização:

O PL 4850-C de 2016, da Câmara dos Deputados, não tem relação nenhuma com atos "reais" de abuso de autoridade. Apesar de ser assunto totalmente estranho aos fins anunciados do Projeto 4850-C de 2016, o texto da redação final faz um constrangedor "puxadinho" legislativo para falar de atos de abuso praticados por juízes e promotores. Nesse projeto, parece que o assunto foi introduzido às pressas e talvez com a finalidade de atropelar o Projeto de Lei 280/2016, do Senado Federal, que já tratava especificamente do tema. O atropelo foi tão acintoso que sequer menciona revogação ou alteração da Lei 4898/65 (a atual lei de Abuso de Autoridade) e limita-se a transformar em "abuso de autoridade" condutas que já receberam tratamento, direto ou indireto, na Lei Orgânica da Magistratura, na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público ou mesmo condutas que já são punidas como corrupção pelo Código Penal. Enfim, não há um só ato de abuso de autoridade tratado nesse projeto.

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Já o PL 280/16 (apresentado em 5/7/2016) tem melhor técnica e mais foco no assunto, em especial o seu substitutivo apresentado pelo relator senador Roberto Requião, em 22/3/2017, do que o remendo pretendido pelo projeto da Câmara dos Deputados. É uma específica reforma da atual lei de abuso de autoridade, prevendo punição de práticas que tangenciam com a tortura, que retardam cumprimento de alvarás, que agridem o direito à defesa e, claro, prevê punições para atos abusivos também de Juízes e promotores. O Projeto do Senado, portanto, não perdeu objeto e nem foi atingido em substância pelo PL 4850, ao contrário do que se sustentou quando da sua primeira aprovação na Câmara dos Deputados. Um exemplo, portanto, dos atropelos de análise induzidos pelos atropelos legislativos. Em resumo, Senado e Câmara cuidam de dois projetos totalmente distintos.

No Senado, recentemente, um terceiro projeto, o PL 85/2017, proposto em 31/3/2017 - superveniente ao substitutivo apresentado pelo senador Roberto Requião - causou ainda mais confusão. A diferença entre os textos fez com que o relator na CCJ, senador Roberto Requião, apresentasse um segundo relatório, em 17/4/2017, favorável à aprovação do PL 85/2017 e tornando prejudicado o PL 280/2016. Nesse sentido, a proficiência legislativa nos ofertou três projetos distintos, cada qual abordando de um modo o assunto abuso de autoridade (ainda que sem justificação, como no PL 4850-C de 2016), impedindo que o cidadão, leigo ou não, possa ter alguma noção razoável sobre o que, o porquê, e quais as consequências do que se está a legislar.

De qualquer forma, o projeto agora em tramitação no Senado, ainda que alterando o quadro anterior, continua sob o crivo das reclamações de juízes e de membros do Ministério Público, a propósito de um possível "patrulhamento" de suas atividades. De fato, a proposta em trâmite (esse híbrido dos projetos 85 e 280) continua a colocar Magistratura e Ministério Público na mira de atos que considera abuso de autoridade. Esse temor, entretanto, nem antes nem agora tem fundamento.

O Poder Legislativo não vai barrar a Lava Jato ou impor penalidades a eventuais práticas cometidas por agentes públicos, políticos ou servidores que incorram nas condutas apresentadas no Projeto de Lei do Senado, pois somente providências de órgãos de investigação, de controle ou julgamento deterá tal poder. O projeto não muda as regras do jogo, conforme conhecemos, e um processo por abuso de autoridade funciona como qualquer outro processo.

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Infelizmente, o Brasil continua adotando o raciocínio de que medidas criminalizantes e penalizadoras serão a salvação de uma série de destemperos que vivemos, especialmente da odiosa corrupção que se vulgarizou de uma forma endêmica, em vários níveis, e dos excessos que são cometidos a pretexto de combatê-la, que acabam ficando numa zona de perigoso conforto. Em verdade, os excessos denunciam uma descrença no próprio sistema, na medida em que adotam o emblema implícito nos discursos punitivos no sentido de que dentro de um processo democrático, regido por valores e princípios, não se pode punir. Então, transgride-se a lei sob a justificativa de que algumas leis (as punitivas) valem mais que as outras (as garantidoras de um sistema paritário de justiça).

Mas a pauta que se criou em torno do tema, do abuso de autoridade, não representa de modo algum a realidade que deveria estar em discussão se o projeto fosse lido de forma isenta e não midiática. A ideia não é a de inibir a prática investigativa, mas de evitar (e mesmo assim, através de instrumentos que dificilmente se realizarão na prática) que o excesso venha a se tornar a regra.

*Fabrício de Oliveira Campos e Conceição Aparecida Giori, criminalistas e sócios do Oliveira Campos & Giori Advogados

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