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Discurso armamentista é criminógeno

Por José Renato Nalini
Atualização:
José Renato Nalini. FOTO: ALEX SILVA/ESTADÃO  

Um dos raros consensos brasileiros é a recorrente invocação à Constituição. O documento que já foi chamado de "pedaço de papel", por Lassale, que alguns pensam que é aquilo que os juízes querem que seja, está em todos os discursos. Com os mais variados objetivos, usa-se em vão do verbete Constituição.

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Inegável que a Carta "Cidadã" veio a responder aos anseios de uma parcela considerável da Nação que se preocupava com o afastamento do Estado brasileiro da ideia predominante sobre Democracia. Tamanha a expectativa, que ela se tornou uma espécie de panaceia, a cuidar de todos os assuntos, fossem ou não substancialmente destinados a figurar na norma fundante.

Ocorre que o conteúdo inserido pelo constituinte não originário no documento final, foi o fruto de compromisso entre distintas tendências, não raro antagônicas. Disso resultou uma linguagem fluida, plástica, prenhe de termos indeterminados e caracterizados pela vagueza. Foi o que deu origem à República da Hermenêutica: o mesmo dispositivo comporta mais de uma leitura. A interpretação constitucional, não raro, se presta a um exercício retórico. A exuberância semântica, o cultivo do vernáculo, a estilística e outras estratégias servem a se extrair do texto conclusões as mais díspares.

Comprova empiricamente essa observação, a frequência com que o Supremo Tribunal Federal, que deveria se resignar ao eficiente exercício de sua missão primordial - a guarda precípua da Constituição - não consegue consenso, mas maiorias oscilantes. No mundo ideal, uma Suprema Corte deveria sinalizar à República aquilo que vale, pois compatível com a norma fundamental e o que não vale, porque se afasta de sua letra ou de seu espírito.

O uso à la carte da Constituição é algo que confrange a eficácia da norma constitucional. Em nada contribui para amenizar o reiterado clamor em busca de uma ficção: a absoluta segurança jurídica. Será possível pretender garantia de única e constante aplicação da lei, se nem os máximos guardiões da lei fundamental chegam a um acordo sobre o seu significado e alcance?

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Todavia, uma Constituição democrática estabelece limites e vínculos e introduz uma incorporação limitativa com relação a todos os poderes públicos. Nossa Carta carece de mais preciso rigor científico. Todavia, essa deficiência não legitima a tolerância a manifestações írritas ao que se almeja como convívio saudável. Incitar a cidadania a se armar para se defender de decisões judiciais ou para se opor a autoridades constituídas que tenham optado por alternativa considerada imprópria a uma legião de pessoas, desnatura o ordenamento como fator de preservação hígida do convívio.

A discricionariedade do Judiciário não impede, ou melhor, recomenda a emissão de julgamentos que sejam fatores de limitação dos poderes públicos em garantia de direitos e princípios abrigados na Constituição. Ora, a Constituição da República de 1988 se propõe a edificar uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social. Para isso, prometeu instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como seus valores supremos.

Condiz com esse objetivo aconselhar que as pessoas se armem?

É certo que a inspiração possa provir da grande Democracia do hemisfério, que também estimula seus cidadãos a se armarem. Nação que tem se celebrizado por lamentáveis episódios de chacina, sobretudo em unidades escolares. É o melhor exemplo a ser seguido?

Dir-se-á que a Constituição Americana contém dispositivo expresso a permitir que seus súditos portem armas. É o que consta da Segunda Emenda à longeva e estável Constituição ianque. Mas é dispositivo alvo de acerbas críticas morais e políticas, que Luigi Ferrajoli considera nefasto, pois evidentemente criminógeno.

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Desnecessário ser detentor de singular perspicácia para concluir que incentivar o porte e o uso de armas, liberar cotas suplementares de munição, atinge principalmente aquele indivíduo já propenso a considerar o mundo um palco de guerra. A exasperação dos ânimos no Brasil de nossos tempos baniu a civilidade, a polidez e o respeito, injetando fervor àquele que divide a sociedade entre amigos e inimigos. Aos primeiros, não se enxerga defeitos. Aos segundos, o remédio é bala.

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A experiência é pródiga ao demonstrar que o homem armado se considera onipotente e invulnerável. Ganha em autoestima, assim como subestima o objeto de sua ojeriza. É um fenômeno psicológico. Análogo ao do motorista que, à direção de um veículo de última geração, assume o protagonismo de super-homem.

É questão de sensatez e prudência coibir a periculosíssima tendência armamentista. O incauto crédulo que adquire armas para se defender dos bandidos, não raro é um inocente fornecedor de instrumentos letais à criminalidade profissional.

Por derradeiro, a Constituição da República Federativa do Brasil, tão citada por todos, com os mais antípodas propósitos, não abriga o direito a possuir e portar armas. Só fala, em seu art. 13, § 1º, nas "armas da República", que o bom brasileiro seja pacífica, fraterna e não beligerante.

*José Renato Nalini é advogado, reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras

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