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Direitos indígenas e investimentos em infraestrutura

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Por Júlio Marcelo de Oliveira
Atualização:
Júlio Marcelo de Oliveira. FOTO: MPD/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Nosso país tem carência de infraestrutura em diversos segmentos, tais como ferrovias, portos, linhas de transmissão de energia, estradas etc., e trabalhar para suprir essas lacunas certamente contribui para o desenvolvimento da economia, para a criação de oportunidades, geração de riqueza, trabalho e renda. É algo que precisa ser feito o quanto antes para eliminar gargalos logísticos que impedem que nos desenvolvamos no máximo de nosso potencial.

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A necessidade, relevância e premência dos investimentos em infraestrutura, contudo, não autorizam nenhum tipo de atropelo legal em sua realização. É preciso respeitar a legislação que estabelece ritos administrativos básicos, como procedimentos licitatórios e audiências públicas, que impõe condicionantes ambientais, que requer o respeito ao patrimônio histórico e cultural e que determina o respeito aos direitos dos povos indígenas afetados.

Temos uma cultura de improviso e urgência, uma crônica falta de planejamento, em parte pela descontinuidade administrativa resultante dos ciclos eleitorais, em parte porque favorece a corrupção. Não temos nenhuma visão de futuro de qual será ou deveria ser a infraestrutura ideal para o Brasil nos próximos vinte, trinta, cinquenta anos. Vamos, de governo em governo, fazendo algo aqui, algo ali, construindo uma colcha de retalhos, aceitando o que a improvisação e a atuação dos lobbies é capaz de produzir. Com a retórica de que o ótimo é inimigo do bom, ficamos muitas vezes com o mais ou menos, já que o mais ou menos é melhor do que nada.

Faz parte dessa cultura de urgência e improvisação uma tendência de subestimar riscos e danos e de buscar atalhos procedimentais, caminhos que apenas aparentemente satisfazem as exigências legais, mas que estão longe de concretizar o que o legislador estabeleceu. Um exemplo disso é a forma como costuma ser tratada a questão dos direitos das populações indígenas afetadas por grandes projetos de infraestrutura. Neste ponto, além da sempre alegada urgência, concorre também uma visão de mundo autoritária e preconceituosa, que vê os povos indígenas como inferiores e seus direitos como um estorvo, como um empecilho para o desenvolvimento.

A questão indígena costuma ser tratada como um capítulo da avaliação requerida para o licenciamento ambiental, o que não respeita os direitos dos povos indígenas, porquanto o licenciamento ambiental é providenciado quando já ocorreu a decisão política de implementar um dado projeto, enquanto, em relação aos povos indígenas, a legislação estatui que devem ser consultados previamente.

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Não se faz uma democracia sem respeito aos direitos das minorias e sem o respeito ao império da lei, que coloca todos, governantes e governados, igualmente submetidos à força cogente do ordenamento jurídico. Somente em regimes autoritários pode haver espaço para decisões governamentais implementadas sem ouvir os interessados e sem respeitar seus direitos.

O Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT, em pleno vigor no país, que dispõe sobre a necessária consulta prévia às comunidades indígenas afetadas por projetos de infraestrutura. Diz a convenção, em seu artigo 6º, que o governo deverá "consultar os povos interessados (...) cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente".

O mesmo artigo estabelece, ainda, que as consultas deverão ser "efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas."

Já o artigo 7º preconiza que "Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente".

Desses dispositivos extrai-se claramente a obrigação de o Estado brasileiro consultar os povos indígenas previamente às decisões político-administrativas suscetíveis de afetá-los. A consulta prévia, livre e informada, além de ser um direito, traz segurança jurídica tanto para quem realizará o empreendimento, como para a comunidade indígena, de modo que, afastado nosso inveterado improviso e falso senso de urgência, ela só traz benefícios.

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A questão indígena não pode ser conduzida como algo que se resolva depois, como se fosse subordinada à prévia decisão política. As condicionantes e compensações têm de fazer parte do processo de tomada da decisão política, influenciando-o e limitando-o. Qualquer projeto de infraestrutura que afete populações indígenas merece cuidadosa preparação e equacionamento das questões que a legislação estabelece como prévias e não concomitantes ou posteriores.

Democracia dá trabalho e toma tempo, mas oferece resultados melhores e mais justos. Aquilo que é bem planejado e democraticamente negociado com as partes interessadas, tem tudo para ser realizado com sucesso, ao passo que projetos artificialmente acelerados costumam deixar um rastro de danos e passivos, muitas vezes de impossível reparação.

*Júlio Marcelo de Oliveira, procurador de Contas junto ao TCU e diretor do Movimento do Ministério Público Democrático

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)

Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Acesse aqui todos os artigos, que têm publicação periódica

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