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Direito Falimentar 4.0

Por Daniel Becker e Lucas Latini
Atualização:
Daniel Becker e Lucas Latini. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Este breve texto tem o objetivo de demonstrar que, embora aparentem estar em dimensões diferentes, a Lei Falimentar e a Lei Geral de Proteção de Dados têm, sim, sinergia, merecendo especial atenção do administrador judicial. Mas, antes, vamos ao contexto: na esteira da insegurança econômico-financeira e, consequentemente, jurídica, causada pela pandemia da Covid-19, foi sancionada a Lei nº 14.112/2020, a qual altera a Lei de Recuperações Judiciais, Extrajudiciais e Falências, a Lei nº 11.101/2005.

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Antes mesmo da crise sanitária já havia o reconhecimento, influenciado significativamente pelo direito comparado, da necessidade de atualização dos mecanismos falimentares, visando a manutenção da empresa em funcionamento, a superação do dualismo pendular entre credor-devedor e, com isso, melhor equalização dos interesses dos stakeholders. Com a pandemia e o quadro de estresse por ela agravado, o esforço de mudança precisou ser acelerado.

Entre as novidades previstas na nova Lei, possivelmente a mais marcada pelo dinamismo social provocado pela evolução tecnológica dos meios de comunicação é aquela prevista na alínea K, I, do art. 22, a qual determina, como dever do administrador judicial, a manutenção de endereço eletrônico na internet (website), com informações atualizadas sobre os processos de falência e de recuperação judicial, com a opção de consulta às peças principais do processo, salvo decisão judicial em sentido contrário.

Apesar de este novo dever já ser observado por administradores judiciais modernos, os quais possuem websites com informações e peças dos processos de falência e recuperação judicial, o fato de ele ter se tornado obrigatório por lei é bem-vindo porque privilegia e amplifica a publicidade do Poder Judiciário, homenageando, assim, o conceito de open justice.

Dito isto, ainda que a nova Lei não tenha especificado, experentia docet, as principais informações/peças dos processos falimentares que merecem atenção sob o enfoque da LGDP são: (i) a relação dos credores, com a indicação de endereço físico e eletrônico de cada um, o valor atualizado do crédito, com a discriminação de sua origem e o regime dos vencimentos; (ii) a relação dos empregados, em que constem as respectivas funções, salários, indenizações e outras parcelas a que têm direito, com o correspondente mês de competência, e a discriminação dos valores pendentes de pagamento, e (iii) a relação dos bens particulares dos sócios controladores e dos administradores do devedor.

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Na prática e via de regra, a relação dos bens particulares dos sócios controladores e dos administradores do devedor é acautelada no respectivo juízo falimentar e mantida em sigilo por decisão judicial em razão de sua sensibilidade latu sensu. Da mesma maneira, a relação dos empregados pode ser mantida sob sigilo por força de decisão judicial, mas é comum vê-la disponibilizada nos autos dos processos. Por sua vez, a relação dos credores indica também o CPF de credores pessoas físicas e é mantida disponível nos processos sem qualquer restrição e, inclusive, é disponibilizada, por exemplo, no sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Com isso, surgem algumas preocupações do ponto de vista de proteção de dados porque, ainda que sejam disponibilizados nos autos dos processos por obrigação legal e, portanto, seu acesso seja público na maioria dos casos, não se pode perder de vista a finalidade, a boa-fé e o interesse público que justificaram a sua disponibilização (LGPD, art. 7º, §3º). Aqui, nos restringiremos a discutir essas novas exigências vis-à-vis os titulares de dados pessoais, cujos dados porventura venham a ser tratados no curso das atividades desempenhadas pelo administrador judicial em um processo de falência ou recuperação judicial.

Pela simples vigência da LGPD, o administrador judicial passa a atuar ora como controlador de dados pessoais, uma vez que a ele cabe tomar decisões sobre o tratamento de dados pessoais, ora como operador, pois tratará dados pessoais a comando de terceiros. Assim, a despeito de tudo que a LGPD implica para o administrador judicial, a inovação legal de criação de um sítio eletrônico com inúmeros dados pessoais onera ainda mais a figura.

Agora, o administrador judicial deverá observar também a LGPD nas suas atribuições, prestando reverência à principiologia da lei, sobretudo no que tange ao livre acesso, à transparência, à qualidade dos dados, à segurança, e à prestação de contas (LGPD, art. 6º). Mas não é só. O administrador judicial estará sujeito ao cumprimento de todas as obrigações perante o titular de dados pessoais, o que exige que ele crie ferramentas de gestão de direitos (LGPD, art. 18). Dito de outra forma, caso um titular deseje acessar ou retificar seus dados pessoais disponibilizados no sítio eletrônico, o administrador judicial deverá responder a requisição de forma completa e dentro do prazo previsto na lei (LGPD, art. 19).

Como o administrador judicial pode responder por prejuízos causados à massa falida, ao devedor ou aos credores por dolo ou culpa no desempenho de suas funções, e, agora, também está sujeito à dinâmica de responsabilidade civil da LGPD, não é exagero dizer que a atividade de administração judicial teve seu risco elevado. A instrumentalização eletrônica do dever de informação e transparência previsto na reforma da Lei Falimentar certamente exigirá um recálculo da remuneração do administrador judicial que agora é um agente de tratamento de dados ainda mais exposto, uma vez que sua atividade obrigatoriamente estará na internet.

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Por fim, levando em consideração que a pessoa do administrador judicial exerce múnus de finalidade pública, sendo considerado órgão auxiliar do Poder Judiciário, nos parece que o mais adequado seria o seu enquadramento nas regras de tratamento de dados pessoais pelo poder público (LGPD, art. 23), previstas no capítulo IV da LGPD. Acreditamos, ainda, que o ideal seria a regulamentação setorial deste novo dever pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), uniformizando-o, assim, em âmbito nacional.

*Daniel Becker, sócio do Lima = Feigelson Advogados e diretor de Novas Tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA)

*Lucas Latini, advogado de direito empresarial com ênfase em reestruturação de dívidas, recuperação de créditos e administração judicial

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