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Direito da concorrência e o problema de ser grande

Por Alberto Monteiro
Atualização:

Alberto Monteiro. Foto: Divulgação

Ao ser barrado na montanha-russa de um parque de diversões, Josh vai a uma máquina de desejos e pede para "ser grande". Para sua surpresa, seu desejo é atendido e Josh, personagem de Tom Hanks, acorda um homem de 30 anos. A partir daí, a trama do filme Quero Ser Grande (Big, 1988) traz Josh percebendo a inadequação de fazer, como um adulto, coisas que fazia quando criança, como comer só o recheio da bolacha ou brincar em lojas de brinquedos.

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No Direito de Defesa da Concorrência algo semelhante acontece. Exceto pela prática de cartel, a licitude concorrencial da grande maioria das práticas comerciais depende da verificação de quão grande é o agente.

Isso pode causar estranheza para empresários ou mesmo advogados que não atuam na área. Afinal, a sonegação de um imposto é uma violação tributária independentemente se estamos falando de um botequim de esquina ou de uma grande rede de supermercados. Se as autoridades terão recursos e interesse para investigar um ou outro ilícito é outra história, mas ambas as situações são violações da lei.

No Direito da Concorrência a situação é diferente. Uma mesmíssima conduta pode ou não ser uma violação concorrencial a depender de quem a adota. Isso é bastante comum nas chamadas condutas unilaterais com efeitos verticais, ou seja, estratégias comerciais de um agente de mercado que produz impactos em outros segmentos da mesma cadeia produtiva. São exemplos o fornecedor que exige exclusividade de seus distribuidores ou o fabricante de bens de consumo que determina a que preço os varejistas devem vender seus produtos a consumidores.

A razão disso é que a legalidade concorrencial desses tipos de prática depende dos efeitos (positivos ou negativos) que a conduta gera nos mercados impactados. E isso necessariamente vai depender de quão grande é a empresa em questão.

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OUÇA ALBERTO  MONTEIRO:

Tomemos como exemplo a exclusividade. Um fabricante pequeno da marca de gin X adota como estratégia comercial propor exclusividade a certos bares, ou seja, os bares que aceitam o acordo só podem vender a marca X de gin. Em troca, a marca faz investimentos de design nos bares e ensina os funcionários a fazerem drinks especiais.

Como o fabricante em questão tem apenas 5% de market share na cidade de São Paulo, pouquíssimos bares da cidade aceitam o acordo. A grande maioria dos bares não viu vantagens no acordo porque interessa a eles vender outras marcas para atender ao desejo de seus clientes. Vários bares seguem então disponíveis para venda de marcas concorrentes de gin.

Agora imagine a mesma situação envolvendo um grande fabricante quase monopolista no mercado de gin com sua marca Y, que detém 90% de market share em São Paulo. Nessa situação, como a maioria dos clientes já preferem a marca Y, quase todos os bares se interessam em dar exclusividade ao fabricante em troca dos investimentos ofertados.

Não fica difícil perceber que essa estratégia gera enormes barreiras à entrada ou desenvolvimento de concorrentes no mercado de gin paulistano. Soberano no setor, o fabricante de Y aumenta preços. Há boa chance de estarmos diante de uma infração concorrencial nesse caso.

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Em resumo: condutas comerciais idênticas podem ou não ser ilícitas a depender dos efeitos que provocam no mercado e do poder de mercado do agente. Em 2018, o Cade condenou a Unilever, dona da marca Kibon, por limitar o desenvolvimento de concorrentes no mercado de sorvetes por meio de prática de exclusividade com pontos de venda e outras estratégias verticais, com multa imposta de R$ 30 milhões. Investigada no mesmo processo, a Nestlé escapou sem punições.

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Embora a conduta de Unilever e Nestlé tivessem certas diferenças, um dos grandes motivos para a não punição da Nestlé foi seu tamanho não ser tão significativo no mercado de sovertes, com market share inferior a 20%.

Os conceitos acima têm sido alvo de novas ondas de discussão no contexto de mercados de serviços online que são dominados por gigantes da tecnologia, como o mercado de busca de conteúdo online, onde atua o Google, e o mercado de compras em plataformas online, onde atua a Amazon.

Nesses setores, a concorrência tende a operar em termos de conquista do mercado e nem tanto em termos de disputa por consumidores dentro do mercado, ou seja, uma vez que o agente, por méritos próprios, conquista determinado mercado online e se estabelece como o serviço preferido, erguem-se barreiras para que concorrentes entrem ou se desenvolvam.

Após o estabelecimento da supremacia do Google no mercado de buscas de conteúdo online, seus concorrentes no segmento quase que desapareceram.

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Nessas situações, a conquista de espaço por concorrente parece ocorrer apenas quando o entrante desenvolve modelo de negócio que torna o serviço anterior obsoleto, com uma mudança não apenas do agente preferido, mas da própria forma como o serviço é prestado. Quem não se lembra da substituição em larga escala do Orkut pelo Facebook como rede social padrão dos brasileiros anos atrás?

E a pergunta que segue é: a visão tradicional de que empresas monopolistas sempre prejudicam consumidores por aumentarem preços e reduzirem os níveis de inovação se aplica a esses mercados online? A defesa da concorrência não deve ser um fim em si mesma, mas um instrumento para defesa de consumidores por meio da oferta de produtos a preços menores e maior qualidade.

O Google não cobra pelas buscas de usuários e oferta conteúdo dos mais diferentes tipos (mapas, compras, notícias, imagens, etc) ao alcance de um clique. A Amazon disponibiliza uma enorme variedade de produtos, com preços mais baixos que no varejo físico e com prazos de entrega que podem chegar a um ou dois dias. Será que seria correto dizer que esses gigantes não ofertam qualidade e inovação a seus clientes?

Afinal, a melhor forma que o Direito possui para defender os interesses de consumidores nesses mercados online ainda é via garantia de ampla competição entre vários agentes? Ou deve priorizar outros tipos de proteção, como a proteção dos dados privados de usuários?

São perguntas complexas para as quais o Direito da Concorrência parece ainda não ter respostas satisfatórias. E a inconsistência de decisões de autoridades concorrenciais pelo mundo nos últimos anos reflete esse cenário.

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As autoridades concorrenciais da União Europeia, dos Estados Unidos e do Brasil julgaram um mesmo tipo de conduta unilateral do Google, que envolvia alegado tratamento privilegiado que a empresa concedia à sua própria ferramenta de comparação de preços - o Google Shopping - versus ferramentas concorrentes, como é o caso do Buscapé no Brasil.

A Comissão Europeia considerou a prática do Google como violação concorrencial e impôs multa histórica no valor de 2,5 bilhões de euros. Já o FTC, autoridade norte-americana, decidiu encerrar as investigações em 2013, sem imposição de sansão ao Google, embora outras autoridades americanas tenham demonstrado renovado interesse em investigar o Google recentemente. No Brasil, o Cade concordou com o entendimento norte-americano e absolveu o Google, mas em decisão dividida de 4 a 3 votos do Tribunal do Cade.

Se a melhor forma de proteger consumidores nesses mercados online é ou não por meio da busca de competição efetiva entre diversos agentes econômicos é pergunta para qual o Direito ainda não possui resposta definitiva, embora o entendimento tradicional ainda paute em grande medida a maioria das análises de autoridades pelo mundo.

O que é certo é que para todos os demais mercados ser grande significa risco de que práticas unilaterais possam ser infrações concorrenciais. Sim, no Direito da Concorrência a segurança jurídica pode não ser o princípio mais prestigiado. E não poderia ser diferente. Para averiguar os riscos concorrenciais de determinada prática, advogados necessitam sempre da valiosa ajuda dos empresários conhecedores do mercado de atuação da empresa.

Ter posição dominante, o que a lei presume quando se possui market share igual ou superior a 20%, deve ser sinal de atenção para qualquer empresa no país. Como Josh percebeu ao alcançar os 30 anos da noite para o dia, determinadas condutas aceitáveis quando se é pequeno podem ser inadequadas quando se é grande.

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*Alberto Monteiro é associado da área de Antitruste & Concorrencial de Veirano Advogados

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