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Direito Administrativo de Exceção e covid-19

Por Rodrigo Valgas dos Santos
Atualização:
Rodrigo Valgas dos Santos. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O mundo enfrenta a maior crise do século. A chegada do vírus traz consigo cenário de incerteza e instala um direito típico dos períodos de exceção. Em nosso País, este momento exige resposta firme e concertada, tanto dos poderes instituídos, como da Administração Pública nos âmbitos interorgânico, interadministrativo e interfederativo, ou seja, deve existir coordenação entre os órgãos administrativos, entre os órgãos constitucionais autônomos e entre a União, Estados e Municípios. O Direito Administrativo tem importante missão neste cenário. Momentos excepcionais exigem medidas excepcionais. Para crises desta envergadura, o Direito cunhou o conceito de estado de exceção.

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Como o nome indica, diante do estado de exceção não há como imaginar os direitos fundamentais possam ser plenamente exercíveis em face do interesse público. Assim, se alguém normalmente poderia frequentar a praia com seus familiares e amigos, o Direito Administrativo de exceção passa a impor sérios limites à liberdade ambulatorial e este direito de ir e vir, que normalmente seria absolutamente inquestionável, sofre severas restrições, desafiando a compreensão dos cidadãos quanto à necessidade e obrigatoriedade destas determinações.

Importante pontuar que dentre as características fundamentais ao estado de exceção estão a: i) emergência e a ii) temporariedade. Não há permanente estado de exceção. Para decretação das hipóteses de exceção devemos ter efetiva crise de caráter emergencial e a transitoriedade deve ser a regra quando decretado.

Para combater a pandemia, o Congresso Nacional aprovou Decreto Legislativo n. 6 de 2020, que reconhece a ocorrência de Estado de Calamidade Pública, dispensando o atingimento das metas fiscais desse ano para atender a necessária alocação de recursos públicos para controle da covid-19. No plano constitucional, as medidas de exceção estão previstas na Constituição da República. Tratam-se do Estado de Defesa (art. 136 da CR) e Estado de Sítio (art. 137 da CR). No caso do Estado de Defesa, a pandemia da covid-19 poderá ensejar sua decretação, com implicações aos direitos de reunião, ocupação e uso de serviços públicos. Conforme a redação do § 2º do art. 136 da CR, tal medida poderá ser decretada por período não superior a trinta dias, podendo ser prorrogada. Caberá ao Congresso a apreciação do decreto, podendo rejeitá-lo, implicando na consequente cessação do Estado de Defesa. Já quanto ao Estado de Sítio (art. 137 da CR), medida muito mais extremada, apenas poderá ser adotada caso se mostrem ineficazes as medidas tomadas no estado de defesa. Até o presente momento, não há razões que levem à sua decretação, mas há rumores que o Palácio do Planalto estuda sua decretação.

A decretação de Estado de Defesa não é algo fora de nosso horizonte, pois corremos o risco de grave afetação da ordem pública e paz social. Afinal, a crise financeira que nos acompanha desde 2014 levou muitos brasileiros à informalidade e estes serão afetados drasticamente, pois estão fora de um sistema mínimo de proteção social de direitos e dependem da normalidade econômica para proverem seu sustento. Quanto aos brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, o quadro inspira muita atenção. Lamentavelmente, o Brasil corre um risco adicional em relação aos demais países. Trata-se do risco de uma convulsão social que poderá implicar em saques e atos de violência, cujo estopim poderá ser a covid-19. Outro cuidado fundamental está relacionado à efetiva necessidade das medidas de exceção. Tais medidas devem ser tomadas apenas se presentes seus requisitos, sob risco de ameaçarmos a estabilidade de nossa democracia.

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Já no plano administrativo, as medidas de exceção podem ser veiculadas no velho e agora renovado poder de polícia, que a despeito das transformações contemporâneas num direito administrativo ordenador, pode ser adotado pela Administração observando certa margem de liberdade de apreciação (discricionariedade); com seus próprios meios e sem necessidade de determinação judicial (autoexecutoriedade) e com força coercitiva a todos aos cidadãos (coercibilidade). O poder de polícia visa regrar a intervenção administrativa no âmbito infralegal restringindo a autonomia privada para concretizar valores constitucionais e atender ao interesse público.

A satisfação do interesse público pode implicar na restrição a bens, direitos e interesses privados. Claro o princípio da proporcionalidade e suas máximas parciais da: i) adequação, ii) necessidade; e iii) proporcionalidade em sentido estrito que devem balizar a adequada aplicação do interesse público e sua compatibilidade com direitos fundamentais.

O Direito Administrativo fornece diversas ferramentas para atender ao interesse público de forma excepcional, tal como a contratação direta sem licitação e a requisição administrativa, que pode incidir sobre bens imóveis ou móveis, serviços, de modo a intervir e limitar o exercício da propriedade privada sejam em tempos de paz ou guerra.

O poder de polícia será intensamente utilizado na crise causado pela covid-19. Nesse sentido, destaca-se a Lei 13.979/2020, editada justamente para o enfrentamento da emergência de saúde pública causada pelo coronavírus. Referida norma dispõe sobre diversas medidas que objetivam a proteção da coletividade e a tutela do interesse público. Apenas para pontuar alguns dos dispositivos da Lei 13.979/2020, destacamos a adoção de isolamento de pessoas contaminadas, meios de transporte ou mercadorias (art. 3º, I) e quarentena que restringe atividades ou separação de pessoas e bens suspeitos de contaminação (art. 3º, II).

A restrição excepcional de entrada e saída no País também resta prevista no inciso VI do art. 3º da norma, exigindo-se recomendação técnica e fundamentada da ANVISA, quer por rodovias ou aeroportos.

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Mas não são apenas restrições. A Lei 13.979/2020 assegura no art. 3º, §2º, I, II e III, o direito à informação dos estado de saúde dos afetados pela covid-19 e assistência à família; o direito a receberem tratamento gratuito, e, nesse particular a existência do SUS de modo pulverizado em todo território nacional poderá facilitar o tratamento dos doentes; o respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, embora já previstos em nossa Constituição, devem ser reproduzidos em normas desse alto teor interventivo.

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Outro tema caro ao Direito Administrativo, trata da contratação direta por dispensa de licitação pública visando a aquisição de bens, serviços, insumos de saúde para o enfrentamento da pandemia (art. 4º da Lei 13.979/2020). Por evidente, enquanto perdurar a situação emergencial, não há que cogitar-se de licitação pública pois manifestamente afrontosa à conveniência e oportunidade de medidas que devem ser adotadas imediatamente.

O descumprimento destas normas poderá sujeitar à responsabilização, nos termos da lei, de todos os que a descumprirem (art. 3º, §4º da Lei 13.979/2020), novamente exigindo ação coordenada entre os poderes instituídos.

Diante de tantos dilemas a serem enfrentados pela crise da covid-19, temos de ter habilidade de assegurar as prerrogativas e sujeições da Administração Pública com a autonomia privada e a liberdade individual. Coloca-se de modo agudo a tensão do clássico binômio: autoridade-liberdade. A identificação e prevalência do interesse público deve ser realizada do melhor modo pelas autoridades competentes.

Temos assistido à edição de diversos Decretos Estaduais, Municipais e Instruções normativas cujo conteúdo são flagrantemente inconstitucionais. Ainda que algumas destas medidas sejam pragmaticamente eficazes, outras não o são. Qualquer interferência nos direitos fundamentais não pode descurar da Constituição, e, a despeito da urgência das providências a serem tomadas, estas não podem se dar ao luxo de serem demasiadas ou mesmo insuficientes, razão pela qual sobreleva a importância do Direito Administrativo para atendimento do interesse público. A escassez impõe a alocação ótima de recursos nas mais diversas áreas.

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Mais que nunca se faz necessária ação coordenada entre os governantes e autoridades federadas. Não é tempo de disputas próprias do campo político. Não devemos politizar medidas de alto cunho interventivo na vida de nossos cidadãos. É tempo de utilizarmos das ferramentas tradicionais do Direito Administrativo, a exemplo do uso do poder de polícia, requisições e intervenções administrativas, para dar efetivo tratamento à grave crise, mas também não está descartado o uso de um Direito Administrativo mais consensual, que tenda a integrar de modo concertado e coordenado todos os poderes públicos. O desafio é imenso e nosso sistema jurídico será intensamente testado.

*Rodrigo Valgas dos Santos, professor de Direito Administrativo e segundo vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA)

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