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Desmontando o BNDES no meio da pior crise da história

Por Arthur Koblitz
Atualização:
Arthur Koblitz. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Em meio a pior crise econômica da sua história, agudizada pela pandemia, o governo mantém a todo vapor sua agenda explícita de desmobilização e desmonte do BNDES. Ao invés de capitalizar o Banco para utilizá-lo no combate às consequências econômicas da crise, mantém o BNDES com baixa capacidade de influência, por meio da manutenção da TLP sem revisões, destrói um dos instrumentos de ação do órgão com a liquidação do patrimônio da BNDESPar e descapitaliza a instituição com o acelerado pagamento antecipado de empréstimos ao Tesouro. Graças ao Congresso Nacional os repasses previstos na Constituição de 1988 foram mantidos, ainda que tenham sido reduzidos, apesar das diversas vezes que o governo tentou eliminá-los (PEC da Previdência, MP 889 e PEC-Emergencial).

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Para viabilizar esse desmonte institucional, é importante registrar ter sido necessário enfrentar a resistência dos técnicos do BNDES. Tornaram-se comuns destituições dos executivos que apresentam objeções técnicas a uma agenda que é contrária à instituição onde trabalham. Não se trata de mera mudança de orientação política, algo com o qual os técnicos do BNDES sempre lidaram e operaram, mas de formas de execução que colocam em risco a sustentabilidade da instituição.

Na Área de Mercado de Capitais, em particular, houve saída em massa dos executivos que eram responsáveis pelas decisões e execução dos desinvestimentos (destituídos ou por iniciativa própria), em volume e velocidade sem precedentes nessa instituição quando começou a ficar claro o que a administração tinha como estratégia. Tratam-se de ferramentas que podem ser utilizadas na administração pública, mas na atual gestão tais medidas foram implementadas numa escala e com uma falta de constrangimento incomuns. Outras ações igualmente importantes têm sido também a perseguição a AFBNDES (Associação dos Funcionários do BNDES) e mais recentemente o desrespeito a institutos, como a eleição de representante dos empregados no Conselho de Administração e à Comissão de Ética. O que pode ser considerado ataques à governança do BNDES ou, no mínimo, atos contrários ao tão propalado compromisso com a transparência.

A diretoria do BNDES comunicou na semana passada aos seus técnicos que realizará nova eleição para representante dos empregados no Conselho de Administração (CA).

A eleição realizada em dezembro do ano passado determinou que eu seria o representante dos empregados. Fui eleito no primeiro turno com 72,9% dos votos contra dois outros candidatos. Dos três pleitos realizados para eleger o representante dos empregados no CA do BNDES, minha vitória eleitoral foi de longe a mais expressiva. Não me dar posse e convocar novas eleições foram as ações mais drásticas, numa série de outras que começaram com a tentativa de não permitir que diretores da AFBNDES pudessem concorrer à eleição, ou seja, tentaram desde o início inviabilizar minha candidatura que só foi possível por decisão da Justiça.

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Os empregados me elegeram e o fizeram com a contundência que minha margem de vitória demonstra pela mesma razão que a atual administração faz tudo o que pode e o que não deveria para impedir a minha nomeação: tenho sido um crítico aberto do desmonte do BNDES.

Estão liquidando a carteira da BNDESPar, braço de participação acionária do BNDES. Venderam boa parte da carteira no meio de uma pandemia. É muito difícil encontrar qualquer lógica operacional ou financeira nesse movimento. Afinal, somente se realiza a venda apressada de ativos em contexto amplamente desfavorável como o da pandemia quando premido por urgente necessidade de levantar recursos. Mas qual seria a necessidade e urgência do BNDES, que possa ser tecnicamente sustentada, tendo notório acúmulo de recursos em sua Tesouraria? Pior, no jargão do mercado financeiro, o BNDES está "deixando dinheiro na mesa" ao realizar a venda açodada de sua carteira de ações em contexto econômico desfavorável e sem necessidade justificada - ações essas que, em última análise, pertencem ao Estado brasileiro, figurando o BNDES, empresa 100% pública, como um simples "custodiante". Sinais disso são fáceis de identificar.

Entre os desinvestimentos com maior perda patrimonial para o BNDES (e necessário ganho patrimonial de mesmo montante para o mercado financeiro privado nacional e internacional) pode-se citar o da Vale. No mesmo período em que algumas das agências mais destacadas do mercado financeiro recomendavam a retenção de ações da empresa em carteira, o Banco vendeu ações da Vale por cerca de R$ 60 a unidade em agosto e novembro de 2020. Quando as ações da Vale atingiram R$ 102 em janeiro, escrevi um artigo denunciando o que estava acontecendo. O artigo causou indignação na diretoria do BNDES e tem sido usado como alegação para não me empossar em violação clara do direito à liberdade de expressão. De lá para cá, o BNDES acabou de vender o que tinha em carteira da Vale. A própria empresa comprou suas ações recentemente e, agora no final de abril, as ações atingiram o patamar de R$110.

As evidências dessa venda apressada e inoportuna são chocantes. Seriam elas acidentes decorrentes de imprevisibilidades que são inexoráveis no mercado de capitais? Quando examinamos o que acontecia no Banco, vemos que não. Houve mudanças de metodologia de avaliação do preço justo das ações para ampliar o intervalo de preço em que vendas seriam possíveis e, principalmente, adotou-se um pressuposto sobre o risco da carteira que colocava o BNDES sobre forte pressão vendedora. A justificativa para essa avaliação radicalmente exagerada dos riscos da carteira da BNDESPar não foi imposta pelo Banco Central, mas deliberadamente engendrada pela atual administração.

Nesta semana, em uma live promovida por um jornal, o diretor Leonardo Cabral mencionou que a diretoria "se deu" um prazo para desinvestir R$ 90 bilhões até 2022. E foi isso mesmo: a diretoria se impôs um prazo para vender. É preciso dizer mais alguma coisa para provar que foi criada uma pressão de venda?

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Toda retórica de que o Banco estaria vendendo suas ações para poder aplicar em investimentos supostamente mais meritórios não fica de pé depois do exame mais superficial: não houve substancial aumento no investimento ambiental ou em infraestrutura econômica ou social que justifique os desinvestimentos na BNDESPar. Mais da metade da carteira da BNDESPar foi liquidada para o Banco manter os recursos obtidos na tesouraria!

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Voltando à live desta semana temos a comprovação disso: a "nova agenda" da carteira da BNDESPar. Mencionam como estratégia para "investir" fundos de crédito em torno de R$ 4 bilhões em inovação (foi citado o Criatec, cujo investimento histórico roda na faixa de centena de milhões) e "ASG" (investimentos sociais). O próprio diretor está falando de R$ 5 bilhões. Ou seja, a "reciclagem da carteira" significa vender R$ 90 bilhões e investir R$ 5 bilhões.

O BNDES "devolve" recursos para o Tesouro Nacional (paga antecipadamente empréstimos do Tesouro) desde o final de 2015. Quando esses desembolsos passaram a ser mais significativos, realmente custosos para o BNDES, o TCU deu legitimidade para a ação que se chocava claramente com os artigos 36 e 37 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Note-se que mesmo juízo sobre a incompatibilidade da devolução e a lei foi assumido publicamente por técnicos do TCU. Não surpreende que o órgão tenha acabado por decidir-se por outro caminho para fundamentar a antecipação de pagamento de empréstimos determinada (e por isso ilegal) pelo controlador do BNDES.

No início de 2021, o TCU declarou que os empréstimos, que o governo exigia que fossem pagos antecipadamente, eram na verdade ilegais e determinou a apresentação de cronograma de devolução dos recursos que ainda faltavam ser pagos. O TCU identifica irregularidade na decisão do governo da época de optar por utilizar títulos públicos para realizar o repasse dos recursos sem registrá-los no orçamento. A plausibilidade dessa nova fundamentação é dificilmente superior a anterior: todos os empréstimos realizados foram autorizados por leis específicas aprovadas pelo Congresso Nacional de 2008 a 2014!

Mesmo assim, o TCU teve a preocupação de mitigar os impactos sobre o BNDES e demais bancos públicos e determinou a modulação dos efeitos da sua decisão de modo a comportar a apresentação de um cronograma de devolução que respeitasse o fluxo de retorno dos recursos já aplicados em operações de financiamento.

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Como a diretoria atual respondeu à nova decisão do TCU? Não apenas optou por não recorrer da decisão, mesmo contra a melhor opinião que prevalecia no BNDES em suas defesas prévias, como também decidiu não utilizar o prazo mais alargado de devolução concedido pelo Tribunal, empenhando-se em devolver os recursos o mais depressa possível!

Resultado: o BNDES formalizou perante o TCU proposta de devolução dos quase R$ 160 bilhões que ainda estariam sob seu controle até 2022 e anunciou a devolução de R$100 bilhões em 2021, quando seria necessário devolver apenas R$ 50 bilhões para atender a determinação do TCU.  Já foi anunciado que a administração Montezano quer devolver R$ 160 bilhões até 2022, quando pelas orientações do TCU a devolução poderia ser realizada de forma gradual de acordo com o fluxo de retorno das operações, em síntese, até 2040!

Qual pode ser a explicação para esse furor em descapitalizar o BNDES? O fato é que essas "antecipações" aumentarão artificialmente o poder de fogo orçamentário do Poder Executivo no ano eleitoral de 2022 a custa da capacidade financeira de atuação anticíclica do BNDES em futuros governos, o que pode, ou não, ser uma simples coincidência.

Enquanto a atual diretoria e o Conselho de Administração estão focados na implementação dessa agenda destrutiva, o governo assiste a fuga de indústrias do país sem esboçar reação estratégica ou mesmo preocupação com o que ocorre.

Vivemos num mundo muito diferente da empolgação liberal que impressionou os velhos liberais de Chicago, como se autodenomina a equipe econômica, que hoje pilotam a economia brasileira. Estamos muito distantes daquele ambiente ideológico da empolgação marcado pela a crise do keynesianismo dos anos de 1970. Vivemos no mundo do desenvolvimento ininterrupto da China e de outros países asiáticos, movidos por bancos públicos. No mundo em que a Alemanha, pilotada por um governo conservador dá protagonismo ao seu "BNDES", o KfW, no combate à crise da pandemia. E, principalmente, no mundo em que o governo americano apresenta o plano Biden e o governo inglês um novo banco público para financiar infraestrutura. Os dois países que foram a matriz ideológica do neoliberalismo, os dois países com mercado de capitais mais profundos, dão sinal de que precisam de instituições públicas de incentivo econômico para sair da crise e para competir com a ascensão dos países asiáticos.

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Talvez o que acontece no BNDES não tenha a capacidade imediata de atrair a atenção da opinião pública dada a concorrência com tantas ações destruidoras e antinacionais, mas deveria. Antes que seja tarde demais.

*Arthur Koblitz, economista e presidente da Associação dos Funcionários do BNDES (AFBNDES); foi eleito em dezembro de 2020 para integrar o conselho de administração do BNDES

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