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Democracia e liberdade: valores inegociáveis

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Por Flávio de Leão Bastos Pereira
Atualização:
Flávio de Leão Bastos Pereira. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Ontem, 6 de janeiro de 2021, os Estados Unidos da América e seu povo sofreram uma tentativa de golpe de Estado. O que parecia inimaginável aos olhos do mundo, especialmente para nós, latino-americanos acostumados aos golpes de Estado violentos e que legaram uma história marcada pela tortura, pelas mortes e subdesenvolvimento, efetivamente ocorreu. Mas, ao contrário do que se pode concluir num primeiro momento; apesar da improbabilidade de assistirmos em tempo real a tentativa de golpe e o vandalismo cometido por extremistas de direita no Capitólio, o Congresso das mais poderosa nação do mundo, se analisados com mais detalhes os antecedentes que nos conduz a esta data que entrará para a história como um ocasião marcada pela "infâmia", parafraseando o Presidente Roosevelt em seu discurso naquele mesmo prédio do Congresso dos Estados Unidos, após o ataque a Pearl Harbor pelo Império do Japão em 7 de dezembro de 1941, veremos que os discursos antidemocráticos, misóginos, omissos e tolerantes em relação aos movimentos supremacistas e racistas dos EUA, dentre outras atitudes, especialmente o questionamento sobre o resultado das eleições americanas mesmo antes de sua realização, já indicavam o que parecia impensável.

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Não se chega a um momento de ruptura democrática sem que antes sinais claros não sejam perceptíveis. Tais indicativos são detectáveis já durante campanhas eleitorais ou, ainda, pelo histórico pessoal, profissional, social e político de qualquer possível candidato. Como afirmou Ludwig Wittgenstein, minha linguagem reflete meu universo.

Fato é que os regimes democráticos são permanentemente submetidos a um paradoxo: a Democracia representa o caminho mais rápido e menos traumático para aqueles que desejam destruí-la. Hitler confirma esta lição histórica ao vencer, por meio de alianças políticas entre o partido nazista e outros partidos políticos conservadores, como o DNVP, nacionalista e industriais alemães, as eleições que o levaram ao Poder, na Alemanha, em janeiro de 1933.

As cartilhas populistas que colocam em risco os regimes democráticos não apresentam, via de regra, nenhuma novidade; possuem sua receita imutável: são antiglobalistas; afirmam defender os empregos de seus "nacionais"; portanto, são racistas e xenófobos; propagam o medo por meio de visões conspiracionistas e tentam, incessantemente, minar as instituições e a imprensa livre. O desemprego, a corrupção, a repulsa à ciência e ao racionalismo complementam suas cartilhas.

A pandemia, por exemplo, que já matou 1.878.581 de vítimas no mundo até a data do fechamento deste artigo, com mais de 87 milhões de infectados, seria resultado de uma conspiração de algum país; ou, numa versão mais provinciana, uma gripezinha falsamente agravada por uma imprensa interessada em impor seus interesses.

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O que torna a primeira tentativa de golpe de Estado em território norte-americano como um exemplo histórico único, não é apenas o fato de que se deu na propalada "terra da liberdade" e do tal "sonho americano", mas também dois outros fatores: primeiro, pois proposta e inspirada pelo próprio Presidente que acaba de ser, inquestionavelmente, derrotado nas urnas, segundo as regras postas; e, em segundo lugar, que tais fatos que chocaram o mundo, podem inspirar exemplos semelhantes por parte de lideres autoritários ao redor do mundo, igualmente populistas e que governam países institucionalmente mais frágeis dos que os Estados Unidos.

Candidatos e governantes eleitos devem responder por seus ataques à democracia, não apenas porque juram respeitar e defender suas Constituições, mas também diante do fato de que, uma vez eleitos, devem governar para todos, sem exceção. O apoio a manifestações políticas antidemocráticas e a ataques às instituições políticas e de Estado traduzem comportamentos que deixam claro o desprezo à Constituição e aos valores inerentes à liberdade. Discursos intolerantes não podem ser admitidos por um regime democrático, pois pressupõem a extinção do elemento básico para a democracia: o espaço político comum para a composição de ideias antagônicas de modo a permitir a convivência harmônica em sociedade, eliminando a violência como meio para a prevalência de um grupo humano, sobre outro.

Sobre a invasão de parlamentos por forças extremistas, a história também demonstra não ser novidade: em 27 de fevereiro de 1933 o Parlamento alemão (Reichstag) foi incendiado, inaugurando o regime de terror nazista com a aprovação, no dia seguinte, do Decreto do Presidente do Reich para a proteção do povo e do Estado, que extinguiu a liberdade de pensamento (expressão, opinião, reunião e de imprensa), além do fim do sigilo de correspondência, culminando com a prisão de 25 mil pessoas levadas ao campo de concentração de Dachau. Ainda em agosto de 2020, grupos extremistas e neonazistas tentaram invadir esse mesmo prédio em Berlim, hoje o Bundestag.

Assim, a invasão do Capitólio, em Washington, neste dia 6 de janeiro de 2021, que levou à morte de uma vítima, merece uma resposta rápida e incisiva na proteção da democracia, além da condenação firme e rápida do mundo democrático. A aplicação da 25ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América do Norte, de 10 de fevereiro de 1967, permite que a maioria dos principais funcionários do departamento executivo ou de outro órgão, como o Congresso, comuniquem ao Presidente do Senado e ao Presidente da Câmara dos Deputados sua declaração por escrito de que o Presidente está impossibilitado de exercer os poderes e os deveres de seu cargo. (https://www.senate.gov/civics/constitution_item/constitution.htm#amdt_25_(1967)).

O momento se revela delicado, uma vez que o novo Presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, será investido em suas novas funções no dia 20 de janeiro de 2021. O desafio em pacificar o país em meio a uma gravíssima pandemia, é grande e resultante, em parte, exatamente dos ataques tolerados à democracia durante os últimos anos de populismo presente em alguns países.

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Como escreveu o segundo Presidente norte-americano John Adams (1797-1801), uma vez que um governo abandone a liberdade, ela não poderá ser restaurada; liberdade, uma vez perdida, estará perdida para sempre¹.

¹MOORE, Kathryn. The American President - A Complete History, p.28. New York: Fall River Press, 2007.

*Flávio de Leão Bastos Pereira, advogado e professor, doutor em Direito Político e Econômico. Membro do rol de especialistas das Academia Internacional dos Princípios de Nuremberg (Alemanha). Especialista em Genocídios e Direitos Humanos pelo International Institute for Genocide and Human Rights Studies (Zoryan Institute e Universidade de Toronto). Professor de Direito Constitucional

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