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Democracia e institucionalidade

Por Thiago Pinheiro Lima
Atualização:
Thiago Pinheiro Lima. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A democracia brasileira tem vivido uma verdadeira prova de fogo nos últimos tempos. Não bastassem os ataques vazios ao sistema eleitoral, na tentativa de pôr em dúvida a lisura do processo de captação e registro eletrônico dos votos, intensificaram-se as investidas contra o Poder Judiciário, sob críticas que não raras vezes superam o campo jurídico-institucional.

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Não é de hoje, a bem da verdade, que se observa um claro movimento político nesse sentido. Nos últimos anos tentou-se normalizar absurdos como ameaças à magistratura brasileira; a tentativa frustrada de querer transferir ao Supremo Tribunal Federal a responsabilidade pela aparente falta de coordenação do Governo Federal no combate à pandemia de Covid-19; ou mesmo as menções nada honrosas por parte da cúpula do Executivo nacional desferidas contra os membros do Colegiado da mais alta Corte de Justiça do País.

Situações como essas revelam uma espécie de patologia institucional, em violação ao artigo 2º da Constituição da República, que determina a harmonia entre os Poderes como premissa essencial inerente ao princípio da separação dos poderes.

A acusação recorrente de que o Supremo agiria com ativismo judicial não se sustenta. E isso pelo simples fato de que, por força do princípio da inércia da jurisdição, tanto o Supremo Tribunal Federal como qualquer outra instância judiciária não agem inicialmente de ofício, mas sim e tão somente quando provocados por interessados legitimados para tal. Logo, ao decidir sobre qualquer tema que lhe seja submetido à apreciação, o Supremo não está nada mais do que cumprindo um dever expresso previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição de 1988.

Em mais um capítulo dessa conturbada relação entre os dois Poderes, a imprensa noticiou nos últimos dias que estaria sendo concebida proposta de Emenda à Constituição visando a alterar de 11 para 15 o número de ministros da Suprema Corte, objetivando obter instantaneamente uma maioria que tenha afinidade ideológica com o nomeante de ocasião.

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Além da patente inconstitucionalidade, o que mais preocupa do ponto de vista institucional é a pretensão declarada de subjugar outro Poder com a alteração abrupta do número de membros.

Mesmo que não haja - ainda - nada de concreto em relação ao tema, a simples maturação de uma ideia nesse sentido, por si só, acende o alerta de risco à independência e ao equilíbrio de forças entre os Poderes constitucionais, tão caros à democracia representativa.

Ao confirmar o tom belicoso da proposta, o próprio Presidente da República veio a público afirmar que estaria disposto a desistir da ideia, caso "os integrantes da Corte baixem a temperatura". Esquece, porém, a alta probabilidade de que qualquer proposta de emenda nesse sentido venha a ser submetida à exame de constitucionalidade do próprio Colegiado a que pretende atingir, mormente em face das cláusulas pétreas dispostas no art. 60, §4º da Constituição, que, dentre outros pontos, impedem alterações normativas tendentes a abolir a separação de Poderes.

Demais disso, é preciso igualmente lembrar que, em um estado normal das coisas, movimentos mais bruscos por parte do Presidente da República que venham a atentar contra o livre exercício dos demais Poderes podem configurar crime de responsabilidade, tal qual aconteceria em caso de descumprimento das leis e das decisões judiciais (artigo 85, incisos II e VII, da Constituição da República).

Coincidência ou não, mudanças na composição do STF já aconteceram em um passado não tão distante, marcado exatamente por regimes autoritários, a exemplo do governo provisório de Getúlio Vargas, pós-Revolução de 30; e também da ditadura militar, em que, de forma semelhante ao que agora se almeja, o número de integrantes da Corte passou de 11 para 16 membros, dos quais posteriormente 3 foram aposentados unilateralmente pelo Ato Institucional n. 05.

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E, claramente, isso tem uma razão de ser. O Supremo Tribunal Federal tem a competência precípua de ser o guardião da Constituição. Mais que isso, nas democracias de um modo em geral, compete às cortes constitucionais dar a devida guarida aos direitos fundamentais, ainda que em oposição à vontade da maioria, inclusive tolhendo arroubos autoritários travestidos de pretensa legitimidade por parte do governo que esteja em exercício. E isso, evidentemente, incomoda quem não está disposto ao diálogo democrático.

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Como bem lembrou Jamil Chade, colunista do Uol Notícias, "ao longo dos últimos anos, líderes populistas que chegaram ao poder por meio das urnas usaram a legitimidade que ganharam do processo eleitoral para desmontar a democracia em seus países". Seja Hugo Chávez, na Venezuela; Alberto Fujimori, no Peru; ou mesmo Viktor Órban, na Hungria; todos lograram êxito no ímpeto totalitário mediante o aniquilamento da independência e assunção do controle sobre o Poder Judiciário, muitas vezes com respaldo do Parlamento respectivo.

Diga-se de passagem, nem mesmo a mais tradicional democracia representativa do mundo está a salvo de experiências sub-reptícias como essa. Em 1937, pelo que ficou conhecido como "court-packing plan" ou "plano para encher a corte [de juízes]", o então Presidente dos Estados Unidos Franklin D. Roosevelt fracassou na tentativa de adicionar mais juízes à Suprema Corte Americana como forma de obter maioria favorável à legislação do New Deal, que o Tribunal vinha reputando inconstitucional.

Mais recentemente, a propósito, Comissão instaurada no início do governo de Joe Biden para discutir possíveis reformas na referida Corte constitucional aprovou relatório final que sinalizou profunda discordância entre os seus membros sobre eventual expansão no número de integrantes do Colegiado. Com efeito, a criação de vagas adicionais visava a reverter ou a equilibrar a maioria conservadora presente na atual configuração do Tribunal, lograda em decorrência de nomeações efetivadas ao longo do Governo de Donald J. Trump e que tem trazido impactos diversos em assuntos muito sensíveis à política partidária daquele país.

Voltando ao Brasil, é deveras preocupante que, em pleno século XXI, diante de inúmeros desafios civilizatórios que nos cercam, parte da classe política se esquive de seguir avançando na resolução dos verdadeiros problemas nacionais (educação, saúde, moradia, segurança alimentar etc.) para, em vez disso, suscitar e incentivar a anarquia institucional em favor de um ou outro projeto de poder.

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É certo que, por sua finalidade precípua de resolução de conflitos, o Poder Judiciário pode eventualmente contrariar interesses pessoais ou políticos de uns ou outros, os quais, no entanto, dispõem de meios jurídico-processuais próprios para questionar ou recorrer do quanto ali decidido. Seja como for, a conformação dos diversos grupos de poder às deliberações judiciais, tanto as emanadas do Poder Judiciário como um todo, quanto do Supremo Tribunal Federal em particular, mais que uma obrigação constitucional, é crucial para a estabilidade do País.

Para finalizar, não se pode esquecer que a prevalência de um ou outro modelo de desenvolvimento nacional precisa ser fruto do debate de ideias e do convencimento da sociedade, não de manobras que busquem subjugar os Poderes constituídos uns aos outros. Não à toa, a Constituição prevê Poderes independentes e harmônicos; garante eleições livres e periódicas; tem por fundamento o pluralismo político; e objetiva a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o que, em última análise, pressupõe a existência de um Estado Democrático de Direito, esse sim, acima de tudo e de todos.

Mudar as regras do jogo "a toque de caixa", certamente, não é uma alternativa republicana. E a história está aí para contar as (más) experiências existentes a respeito.

*Thiago Pinheiro Lima, procurador-geral do MP de Contas de SP, presidente do CNPGC e um dos autores da nova Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa da democracia

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