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Democracia, Constituição e Supremo

Por José Miguel Garcia Medina
Atualização:
Supremo Tribunal Federal, em Brasília. Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

Muito se discute sobre a amplitude dos poderes do Supremo Tribunal Federal, a sua forma de composição, modelos que a corte deve observar ao deliberar sobre as questões submetidas à sua análise etc. Costuma-se analisar esses e outros temas correlatos sob uma perspectiva exclusiva ou preponderantemente técnico-jurídica, para explicar como as coisas funcionam (ou devem funcionar) a partir de determinados ingredientes normativos. E, para compreender esses ingredientes, busca-se identificar na inventividade do legislador os fundamentos dogmáticos dessa ou daquela opção (algo como a mens legislatoris).

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Afirma-se, então, que o constituinte teria optado por esta ou por aquela solução por ter se convencido de que uma determinada teoria doutrinária seria a mais apropriada, ou que a reforma constitucional seria inspirada em regra existente em determinado país, o que aconselharia sua adoção também entre nós.

Mas o desenho constitucional das instituições não deriva, necessariamente, de opções dessa natureza. As escolhas do legislador são informadas, não raro (talvez, com mais frequência), por motivações políticas e contingenciais (nem por isso, ilegítimas), sobretudo quando está em jogo a composição das competências dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

A preocupação política com o fortalecimento da unidade da federação e o temor de que os estados tivessem excessiva autonomia em relação à União deu origem ao recurso que, posteriormente, viria a ser chamado de "extraordinário", dirigido ao Supremo Tribunal Federal, cabível quando tribunais estaduais deixassem de aplicar a lei federal (artigo 59, §1º, da Constituição de 1891)

Também o surgimento da ação declaratória de constitucionalidade (introduzida na Constituição Federal de 1988 pela Emenda Constitucional nº 3/1993) derivou de motivos preponderantemente (exclusivamente, para alguns) políticos. A Presidência da República tinha interesse em evitar controvérsias sobre a constitucionalidade de disposições normativas de seu programa de governo. Para evitar que juízes declarassem, incidentalmente, a inconstitucionalidade de tais regras e deixassem de aplicá-las, criou-se instrumento que permitiria ao Supremo declarar, desde logo, a sua constitucionalidade.

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Claro que, teoricamente, a existência de ação com o propósito de se obter a declaração de que uma regra é constitucional é defensável, mas não é disso que tratamos aqui. Interessa-nos apenas chamar a atenção para o fato de que a feição do Supremo Tribunal Federal não decorre, necessariamente, da adoção de um pensamento teórico previamente elaborado e organizado: antes, decide-se politicamente o que se quer fazer para, depois, dar a essa aspiração política uma forma normativa. A doutrina, então, passa a estudar o tema, precisando-lhe os contornos, dispondo sobre seus princípios, características, elementos, requisitos e efeitos.

José Miguel Garcia Medina. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Décadas antes, também por motivos políticos, surgiu instrumento tido como o antecedente histórico da ação direta de inconstitucionalidade, tal como essa ação veio a ser prevista na Constituição Federal de 1988.

A representação contra inconstitucionalidade de lei foi introduzida na Constituição de 1946 pela Emenda Constitucional nº 16, de 26/11/1965. A medida poderia ser provocada apenas pelo procurador-geral da República, que, à época, além de chefiar o Ministério Público federal, também representava a União em juízo e era demissível ad nutum pelo presidente (além do artigo 126 da Constituição de 1946, conferir artigo 30, II da Lei 1.341/1951).

Um mês antes da promulgação da referida emenda, o presidente Castello Branco editou, em 27/10/1965, o Ato Institucional nº 2, que alterou a Constituição de 1946 e suspendeu as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade da magistratura, excluiu da apreciação jurisdicional os atos praticados pelo regime militar ("pelo Comando Supremo da Revolução e pelo Governo federal", tal como consta no AI nº 2), e ampliou de 11 para 16 o número de ministros do Supremo Tribunal Federal.

Nesse contexto, a declaração de inconstitucionalidade realizada pelo Supremo Tribunal Federal tendia a funcionar a reboque do interesse de quem dirigia o Poder Executivo federal. E isso foi respaldado pelo Supremo, em sua nova composição (isso é, agregados os cinco novos ministros nomeados pelo presidente da República após o AI nº 2).

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Notou-se que a representação contra a inconstitucionalidade surgira como medida de caráter marcadamente político, uma "instituição de caráter político, à semelhança do impeachment", como afirmou o ministro Aliomar Baleeiro (em voto proferido no julgamento pelo Supremo do AgR na Rp 700, em 8/11/1967). Algum tempo depois, quando o Supremo julgou a Rcl 849, em 10/3/1971, o ministro Adaucto Cardoso, vencido, lamentou, "com melancolia", que o procurador-geral da República pudesse arquivar pedidos para que esse órgão pleiteasse a declaração de inconstitucionalidade, já que isso impedia que o Supremo se manifestasse sobre a constitucionalidade do Decreto-Lei 1.077/1970, que previu a possibilidade de imposição de censura prévia. Nesse contexto, assim, era natural que somente se provocasse a realização do controle abstrato de constitucionalidade pelo Supremo se a lei fosse contrária ao interesse do Poder Executivo.

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A Constituição de 1988 ampliou o rol de legitimados para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade e, em seu texto, deixou de prever a submissão do procurador-geral da República ao chefe do Poder Executivo. De todo modo, não deixa de ser importante notar que motivações políticas provocaram a concepção de instituto que, por assim dizer, deu feição ao modelo de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade até hoje existente em nosso direito.

A Constituição de 1988 criou o Superior Tribunal de Justiça e o recurso especial dirigido a esta corte, cabível quando se alegar violação à lei federal. O cabimento do recurso extraordinário passou a se restringir à alegação de violação à norma constitucional, e ao julgá-lo o Supremo realizava controle difuso e concreto de constitucionalidade, como órgão recursal máximo na hierarquia jurisdicional. Ao Supremo Tribunal Federal continuou a tocar também a realização de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade. E, no lugar da representação por inconstitucionalidade prevista em textos constitucionais anteriores, surge, na Constituição de 1988, a ação direta de inconstitucionalidade e, depois, com a já mencionada Emenda Constitucional nº 3/1993, a ação declaratória de constitucionalidade.

Passaram a conviver, assim, dois modos de controle de constitucionalidade, ambos realizados pelo Supremo Tribunal Federal. No início bastante distintos em conteúdo e forma, com o tempo passaram a se aproximar, seja em decorrência de expressivas reformas constitucionais (como a Emenda Constitucional 45/2004, sobre a repercussão geral do recurso extraordinário e a súmula vinculante, entre outros temas), seja em razão do labor jurisprudencial do Supremo, que reconhece, em sucessivos julgados, estar a haver a "objetivação", "não estrita subjetivação" ou "dessubjetivação" do recurso extraordinário. Hodiernamente, em muitos casos, com frequência as duas formas de controle manifestam-se concomitantemente, misturadas. Como exemplo disso, não raro, em uma mesma sessão vê-se sendo julgados recurso extraordinário e ação direta de inconstitucionalidade sobre o mesmo tema.

Embora seja conhecido o caminho percorrido para se chegar até tal estado de coisas, o fato é que essa mistura gera alguns inconvenientes. Afinal, quando julga o recurso extraordinário, o Supremo parte de um caso que lhe chega após ter percorrido toda as instâncias jurisdicionais, para se afirmar se a decisão recorrida deve ser reformada ou mantida. O Supremo, aqui, é instância recursal -- ainda que extraordinária, por certo. Algo diverso sucede quando, por exemplo, se coloca em julgamento uma ação direta de inconstitucionalidade. No caso, espera-se que o Supremo atue de modo similar ao de uma corte constitucional, ainda que integre o Poder Judiciário. E, ao fazê-lo, o Supremo labora também com ingredientes políticos. Recorde-se que o controle abstrato de constitucionalidade, na feição da reforma de 1965, tinha esse propósito (conferir mencionado supra), e pode-se dizer que ele se mantém, à luz da Constituição de 1988.

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Esse é um ponto que gera confusão. A nosso ver, como há muito sustentamos, uma reforma constitucional deveria ser formulada a fim de tornar o Supremo algo mais próximo de uma corte constitucional, tocando as demais atividades ao Superior Tribunal de Justiça. Mas não é isso o que ocorre, contudo. Esse estado de coisas é agravado pois, além das atribuições relacionadas ao controle de constitucionalidade, ao Supremo compete também, entre outras tarefas, a de processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, o presidente e o vice-presidente da República, bem como os membros do Congresso Nacional.

Quis o constituinte que o Supremo fosse um tribunal com competência extremamente abrangente, com feixe de incumbências (e poderes correspondentes) sem igual. A comparação entre o Supremo Tribunal Federal e órgãos como a Corte Suprema dos Estados Unidos da América ou cortes constitucionais europeias revela essa amplitude.

O Supremo Tribunal Federal tem a grave responsabilidade de dar conta das competências que lhes foram conferidas pelo constituinte. Nesse contexto: a) como tribunal recursal (em recurso extraordinário), julga casos em que há controvérsia constitucional, a partir dos quais fixa teses; b) fiscaliza a constitucionalidade das leis (em ação direta de inconstitucionalidade, mais frequentemente), como uma corte constitucional; e, além disso, c) é tribunal penal, com competência para julgar as infrações criminais daqueles que produzem os atos e as leis cuja constitucionalidade é fiscalizada pelo próprio Supremo.

Há outros ingredientes a serem considerados nessa complexa equação. Dois deles, de que pretendo tratar em textos vindouros: o recurso a termos vagos nas disposições constitucionais, como estratégia adotada intencionalmente ou não pelo constituinte, o que acaba "transferindo" para o Supremo a tarefa de definir, com precisão, o sentido da Constituição, o que o torna partícipe na criação do Direito Constitucional (o que é confirmado pela possibilidade da edição de súmulas vinculantes, que têm peculiar força normativa); a variação, ao longo do tempo, dos modos e das formas de violação à Constituição, até se chegar ao que, hoje, se convencionou chamar de democracia iliberal, manifestada através do constitucionalismo abusivo e do legalismo autocrático. Notaremos, aqui, que não apenas a edição de regras constitucionais é motivada por razões políticas, mas que a política acaba influenciando, inevitavelmente, também a construção das soluções pelo Supremo.

Trataremos desses temas em outra oportunidade, pois este texto já vai longe e devo respeitar o leitor que chegou até aqui.

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*José Miguel Garcia Medina é advogado, sócio-fundador do Medina Guimarães Advogados, professor da Universidade Estadual de Maringá e da Universidade Paranaense e autor de diversas obras. Presidente da Comissão Nacional de Acesso à Justiça da Ordem dos Advogados do Brasil

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