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Decisão sobre Difal na ADI nº 7066 põe em xeque a segurança jurídica e a confiança no Judiciário

Por Marco Behrndt , Rodrigo Marinho e Bruna Miguel
Atualização:
Marco Behrndt, Rodrigo Marinho e Bruna Miguel. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Nos últimos meses, ganhou novamente relevância a discussão envolvendo a exigência do DIFAL em operações interestaduais de venda de mercadorias para consumidores finais não contribuintes do ICMS. Se a expectativa era a de que essa discussão não seria mais alvo de quaisquer questionamentos após a Emenda Constitucional nº 87/2015 ("EC 87/15"), o que se verificou foi um cenário totalmente diverso, de novo ajuizamento de ações judiciais por praticamente todos os contribuintes do país.

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O DIFAL, como se sabe, é a sigla comumente utilizada para se referir à parcela do ICMS que é devida ao Estado onde está localizado o destinatário das mercadorias, sempre em operações interestaduais.

Antes das alterações promovidas pela EC 87/15, o DIFAL era exigido apenas em operações nas quais o destinatário era, ao mesmo tempo, contribuinte e consumidor final do ICMS. Estando preenchido esses dois requisitos, o remetente da mercadoria deveria recolher o ICMS para o Estado de origem com base nas alíquotas interestaduais e o destinatário, por sua vez, deveria recolher o "diferencial de alíquota" (por isso, "DIFAL") para o Estado de destino, calculado entre a diferença da alíquota interna e a alíquota interestadual.

Entretanto, quando as operações tinham como destino consumidores finais não contribuintes do ICMS, não havia divisão do tributo entre os Estados de origem e destino. O valor integral do ICMS era devido apenas ao Estado de origem.

Em razão da evolução do comércio eletrônico e do aumento das vendas não presenciais ("e-commerce"), houve um desequilíbrio na arrecadação do ICMS dos Estados onde os consumidores finais não contribuintes estavam localizados, o que acabou conduzindo os Estados a veicularem a exigência do DIFAL nessas operações via celebração de um Protocolo ICMS, qual seja, o Protocolo ICMS 21/2011.

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Após a declaração da inconstitucionalidade do Protocolo ICMS 21/2011, foi promulgada a EC 87/15, que autorizou a exigência do DIFAL nas operações com destino aos consumidores finais não contribuintes do ICMS, de forma a se respeitar a divisão do referido tributo entre os Estados de origem e destino.

Com base na permissão constitucional, foi publicado o Convênio ICMS nº 93/15 ("Convênio 93") o qual foi utilizado pelos Estados e Distrito Federal como o veículo normativo de cobrança do DIFAL. A exigência dessa nova exação via Convênio 93 rapidamente foi alvo de questionamento perante o Judiciário, conduzindo a discussão ao Supremo Tribunal Federal ("STF"), por dispor sobre matéria de competência exclusiva de lei complementar.

Em fevereiro de 2021, o STF concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.287.019 e da ADI 5469 ("Tema 1093"), tendo entendido pela inconstitucionalidade da cobrança do DIFAL via Convênio ICMS, já que a sua exigência deveria ser veiculada via lei complementar. Nesse julgamento, o entendimento do STF foi no sentido de que as alterações realizadas pela EC 87/2015 em relação a consumidor final não contribuinte do imposto, não estava desenhada na Constituição Federal ("CF/88"), referindo-se, pois, a uma nova relação jurídica tributária, a qual deveria ser regulamentada, antes de tudo, por uma norma geral tributária (lei complementar, cf. art. 146, CF).

Julgou, portanto, inconstitucional o referido Convênio, tendo modulado a eficácia da decisão para vigência a partir de 01/01/2022 (à exceção dos contribuintes que ingressaram com ação judicial até a data do julgamento da questão pelo STF), a fim de evitar que os Estados tivessem perda arrecadatória em relação ao DIFAL que vinha até então sendo exigido. A intenção do STF também foi outra, assegurar que o próprio Governo Federal tivesse tempo hábil para editar a Lei Complementar ainda no exercício de 2021, possibilitando a exigência do DIFAL já a partir de 2022.

Com o objetivo de suprir a inconstitucionalidade apontada pelo STF e, assim, validamente instituir a relação jurídica tributária do DIFAL em relação às operações com consumidores finais, foi editada a Lei Complementar nº 190/2022 ("LC 190"), de forma a regulamentar a previsão contida na EC 87/2015.

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Apesar de o projeto de lei complementar ("PLP 32/2021") ter sido enviado pelo Congresso para a sanção presidencial ainda em 2021, a LC 190 acabou sendo sancionada e publicada apenas no dia 05/01/2022.

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Assim, a LC 190, em seu artigo 3º, previu que, para sua vigência, deveria ser observado apenas o prazo de 90 dias, indicando, para tanto, o próprio art. 150, III, "c", da CF/88, que dispõe sobre a necessidade de se atender ao princípio da anterioridade nonagesimal. Foi exatamente neste momento que se iniciou uma nova disputa no Poder Judiciário. Com base no próprio sobreprincípio da segurança jurídica, os contribuintes defendem, principalmente, que não podem ser compelidos ao pagamento do DIFAL no exercício financeiro de 2022, já que também deve ser aplicado o princípio da anterioridade anual para que a cobrança ocorra somente a partir de 01/01/2023.

Além das inúmeras ações individuais, ajuizadas perante todos os Estados e o Distrito Federal, foram ajuizadas quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade ("ADI"), todas com relatoria do Ministro Alexandre de Moraes. Uma delas, a ADI nº 7066, ajuizada pela Associação Brasileira de Indústria de Máquinas ("ABIMAQ"), pretende conferir interpretação conforme à Constituição Federal ao artigo 3º da LC 190, para que se determine seja observada, quanto à produção de efeitos, o princípio da anterioridade anual.

Ao analisar o pedido cautelar, o Relator consignou que o princípio constitucional da anterioridade não teria sido desrespeitado, porque a LC 190 não teria criado ou majorado tributo novo, mas disposto apenas sobre a exigência de tributo que já estaria previsto no ordenamento desde a edição da EC 87/15.

Se por um lado a decisão não surpreende, considerando que esse já tinha sido o posicionamento do Ministro Alexandre de Moraes quando do julgamento do Tema 1093 acima comentado (quando foi vencido pela maioria), por outro lado, entendemos que a referida decisão ignora completamente o resultado do julgamento do Tema 1093, cuja ratio decidendi se pautou na premissa de que a EC 87/15 trouxe a previsão de uma nova relação jurídica, o que justificou a decisão pela necessidade de Lei Complementar. Nesse sentido, o voto do Ministro Relator Toffoli do tema 1093: "Quer se adote a primeira tese, quer a segunda, é certo que a EC nº 87/2015, no tocante ao ICMS correspondente ao diferencial de alíquotas nas operações ou prestações interestaduais com destinatário não contribuinte do imposto, criou uma nova relação jurídico-tributária, tendo num dos pólos (sujeito ativo) o estado de destino".

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Em suma, o que restou decidido pelo STF foi de que o Convênio ICMS 93 não possuía competência formal para instituir a nova relação jurídica tributária do DIFAL prevista na EC nº 87/15, logo, não há como se fundamentar que a LC 190 não se trataria de exigência tributária nova.

A necessidade de obediência às decisões proferidas pelo STF é o que se espera de um sistema jurídico como o nosso, que está pautado na uniformização da jurisprudência pelos Tribunais Superiores e na sua aplicação por todos os juízes (cf. artigos 926 e 927, do Código de Processo Civil), inclusive pelos próprios Ministros. A uniformização da jurisprudência pelos Tribunais Superiores é uma forma de elevar a confiança da sociedade no Poder Judiciário e alcançar a tão almejada segurança jurídica, assegurando-se que situações jurídicas idênticas tenham o mesmo desfecho (isto é, que haja uma única solução para os mesmos fatos e idêntica questão de direito, com a consequente estabilidade jurisprudencial).

Por essa razão, adotando a ratio decidendi do julgamento do Tema 1093, a única conclusão possível, que se encontra em consonância com o que foi decidido pelo STF, de forma vinculante, é que a LC 190, fundamentando-se na EC 87/15, criou relação jurídica nova e, justamente por isso, a sua vigência estaria vinculada ao princípio da anterioridade anual, de forma que somente seria permitida a sua cobrança a partir de 01/01/2023. Anteriormente à edição da LC 190, conforme decidiu o STF, não existia qualquer relação jurídica válida e constitucional que ampararia a cobrança.

Não é possível, quer seja com base em voto superado em julgamento do STF quer seja com base em fundamento não-jurídico (como suposta perda de arrecadação alegada por Estados e Distrito Federal em instrumentos de suspensão de liminar/segurança), que se desconsidere  a necessidade de edição de lei complementar - nos termos do julgamento do Tema 1093 - como o instrumento único e válido para instituição da relação jurídica tributária em questão.

Se o Poder Legislativo não exerceu a competência que lhe incumbia no tempo em que deveria tê-lo feito com a respectiva sanção do Poder Executivo- isto é, dentro do exercício de 2021 - e somente editou essa nova relação jurídica por intermédio da LC 190 no ano de 2022, a exigência em questão somente pode ser iniciada a partir de janeiro de 2023, em respeito ao princípio da anterioridade anual, o qual se revela um direito e garantia fundamental dos contribuintes.

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Essa situação se revela bastante grave não somente sob o prisma jurídico, em razão de clara afronta a posicionamento final do STF, mas, também, sob o prisma financeiro, onde as empresas estão sendo compelidas a recolherem o DIFAL de forma inconstitucional, sob pena de apreensão indevida de suas mercadorias nas barreiras de diversos Estados.

Assim, o que se espera é que o STF reafirme e seja fiel ao posicionamento adotado no julgamento do Tema 1093 e reconheça que a cobrança do DIFAL durante o ano de 2022, seja com base na LC 190, seja com base nas legislações estaduais, é ilegítima. Adotar outro posicionamento, no sentido de que não se estaria diante de uma nova relação jurídica-tributária, como realizado na decisão liminar proferida na ADI nº 7066, faz ruir não só a confiança depositada nas decisões do STF, guardião da Constituição Federal, como também o que objetivou o código de processo civil quando determinou que os tribunais deverão "uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente" (art. 926).

*Marco Behrndt, Rodrigo Marinho e Bruna Miguel são, respectivamente, sócios e advogada da área tributária do Machado Meyer Advogados

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