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De mãos vazias na COP26

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Por Carlos Bocuhy
Atualização:
Carlos Bocuhy. FOTO: DIVULGAÇÃO  

O governo do Brasil chegará em Glasgow, na Escócia, com a segunda maior delegação da COP26, mas de mãos vazias. A conferência sobre mudanças climáticas acontece entre 31 de outubro e 12 de novembro.

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Com um discurso cosmético de economia verde e em busca de recursos, o Brasil, antecipadamente, gera desconfianças e prevenção diante do desmonte da política ambiental promovido pelo governo Bolsonaro. A boa notícia é que a sociedade civil, governos supranacionais e setores empresariais mais lúcidos poderão dar mais credibilidade à presença nacional.

A presença de Jair Bolsonaro fica mais improvável diante das acusações da extensa CPI da Covid. A ética e a diplomacia aconselhariam delegar a missão para alguém com lastro institucional e político, mas a delegação será chefiada pelo atual ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, indicado por seu predecessor, Ricardo Salles. Assim como o anterior, Leite tem longa trajetória de ligações com o agronegócio, especialmente seu setor mais retrógrado, que representa a base do governo.

Seja pelo fato de ser preposto do desastroso ministro anterior, seja pela falta de história na área ambiental, Leite não conta com apoio das forças ambientais lúcidas da sociedade brasileira nem do exterior, portanto seu trânsito internacional será limitadíssimo.

Com um portifólio vazio, a missão brasileira só poderá lastrear sua participação em discursos, não em fatos. Promessas já assistimos várias, desde a Cúpula do Clima convocada pelo presidente americano Joe Biden, onde Bolsonaro desfiou intenções. No dia seguinte cortou duramente verbas destinadas ao Ministério do Meio Ambiente.

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Desta vez teremos mais do mesmo. Além da mala vazia, sem concretude, a delegação oficial levará para a COP26 apenas o engôdo da pedalada climática que Ricardo Salles protagonizou em passado recente. Ao tomar por base o segundo relatório brasileiro de emissões de gases efeito estufa (GEE), Salles deixou de considerar dados mais precisos do terceiro relatório. O Brasil chegará a Glasgow com contas malfeitas, com um artifício contábil que retira a obrigatoriedade em conter aproximadamente 400 milhões de toneladas de carbono até 2030, o que mereceu uma dura crítica da ONU, por ser o único país do G20 a recuar em sua promessa de cortes na emissão de GEE.

Até a rainha Elisabeth II queixou-se recentemente, em particular, sobre aqueles que, em matéria climática, falam e nada fazem. Relações diplomáticas são baseadas em confiança recíproca. Sem entrar no mérito das motivações e interesses envolvidos, de lado a lado, o fato é que, em meados do século XIX o Brasil só fez a lição de casa para interromper o tráfico de escravos depois de sérios percalços com a Inglaterra que ameaçava o bloqueio de nossos portos.

O momento traduz uma seriedade ímpar. O que está em jogo é o próprio futuro da espécie humana e sua sobrevivência em condições saudáveis. As negociações em curso tiveram início a partir da Conferência Rio 92, quando o Brasil era protagonista lúcido, demonstrando ética, identificação com o território e a realidade natural. Naquele momento surgiram os tratados de Diversidade Biológica, de Combate à Desertificação e da Mudança do Clima e nos últimos anos acirrou-se o passivo decorrente do tratamento irresponsável para com a Amazônia e sua biodiversidade, além de avanços na desertização.

Assemelhado ao comportamento frente à Covid, a área ambiental brasileira andou em descompasso e desvario no exercício de suas atribuições, recebendo um tratamento repleto de cinismo e irresponsabilidade. Sob falsos ou nenhum argumento foram devastados os meios operacionais, normativos, científicos e de participação social.

Essa anomalia e disfuncionalidade da gestão ambiental estatal, em sentido contrário aos dispositivos constitucionais, abrigou enormes conflitos de interesse ligados à degradação do meio ambiente. Ao favorecer um estado contínuo de ilegalidades, configurou-se um estado de desacordo com as funções precípuas não só do ministério, mas também da Presidência da República.

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Com que base histórica o atual governo do Brasil poderá prometer, na COP26, que trilhará o caminho da construção de agendas propositivas? Com que histórico demonstrará interesse no estabelecimento de uma infraestrutura social voltada à construção da sustentabilidade, de modo a priorizar transformações voltadas ao bom uso da ciência e da participação social?

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Bolsonaro tornou-se a antítese do ambientalismo internacional. Sobreviveu politicamente completamente apartado dos princípios da ciência e da democracia. Conseguiu, em apenas um ano de mandato, descontruir a boa imagem do Brasil no exterior.

O que se esperar de vinhas amargas? A filósofa alemã Anna Arendt, uma das mais influentes do século XX, afirmou que "as mentiras políticas modernas lidam eficientemente com coisas que definitivamente não são segredos e sim conhecidas praticamente por todos. Isso é óbvio no caso em que se reescreve a história contemporânea na frente daqueles que a testemunharam".

Podemos afirmar que existe uma tendência inercial irrefutável, um traçado sombrio porém lógico, conduzido por Bolsonaro desde 2019, quando se recusou a sediar a Conferência do Clima. Desde então, e até o momento, o presidente professou a negação da ciência, da participação social, da ecologia e das boas práticas democráticas.

Parafraseando Arendt, será capaz a mentira política moderna, conduzida pelo governo de Jair Bolsonaro durante a COP26, capaz de reescrever a história diante daqueles que a testemunharam? Isso é altamente improvável, especialmente considerando as baixas probabilidades de que os compromissos que vierem a ser anunciados possam, de fato, transformar-se em realidade.

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Nem Freud auxiliaria, uma vez que ao analista cabe a verdade do desejo para que o analisado o reconheça como tal. Como fazer aflorar as reais motivações, a intencionalidade de tal destrutividade dotada de poder, com grande capacidade articulada em simulações e figurações?

É um momento obscuro. Prenuncia-se mais um duro golpe para o Itamaraty, um duro golpe para o Brasil. É lastimável que isso aconteça com a histórica e notável diplomacia brasileira, que constituiu limites aos esplendidos rincões deste país. É especialmente triste para todos nós brasileiros, que seremos submetidos a mais este vexame internacional.

*Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

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