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Dano à Lava Jato será maior com eventual suspeição de Moro do que com decisão de Fachin

Deltan Dallagnol, ex-coordenador da Lava Jato, afirma que anulação de condenações de Lula é menos danosa para demais processos, afirma que “há uma reação” contra o modelo de combate à corrupção no Brasil adota e questiona se os bilhões de reais recuperados vão ser devolvidos aos condenados e delatores, se operação for anulada por completo

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Foto do author Rayssa Motta
Por Ricardo Brandt , Fausto Macedo e Rayssa Motta
Atualização:

O procurador da República Deltan Dallagnol: ex-coordenador da força-tarefa. Foto: Gabriela Biló / Estadão

O ex-coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol, acredita que se o Supremo Tribunal Federal (STF) aceitar o pedido da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e declarar a suspeição do ex-juiz federal Sérgio Moro, as consequências para os processos são "mais graves", do que os gerados pela decisão do ministro Edson Fachin desta semana. O relator da Lava Jato decidiu anular as condenações do  petista e tirar os processos de Curitiba.

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"O pano de fundo dessa decisão (de Fachin) era a perspectiva de declaração de suspeição do ex-juiz federal Sérgio Moro, que teria consequências mais graves ainda para esses e talvez outros casos (da Lava Jato)", afirmou Dallagnol, em entrevista ao Estadão.

Fora das apurações do caso Petrobrás, desde o final de 2020, Dallagnol afirma que 'há uma reação' contra o combate à corrupção no Brasil, diz não acreditar que toda Lava Jato seja anulada, defende a publicidade dada aos processos e alerta sobre a possibilidade de retrocessos no combate à corrupção no País. Afirmou ainda que tem a consciência tranquila, diante dos que acusam a operação de ter ajudado a eleger o presidente, Jair Bolsonaro. "Bolsonaro se apropriou da bandeira anticorrupção, mas não foi o único candidato a fazer isso, o que mostra que esse não foi o fator determinante para sua eleição."

LEIA A ENTREVISTA:

Como recebeu a notícia de anulação das condenações do ex-presidente Lula?

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Deltan Dallagnol: Com surpresa como todos. A Segunda Turma, ficando vencido frequentemente o ministro Fachin, vinha retirando de Curitiba os crimes que não têm ligação direta com a Petrobrás. O ministro aplicou esse entendimento majoritário porque a denúncia contra o ex-presidente descreve um esquema mais amplo de corrupção envolvendo vários órgãos federais, para além da estatal. É importante ressaltar que o ministro não disse que a denúncia estava errada.

O efeito disso foi a anulação das decisões proferidas nos casos, que poderão ser retomados em Brasília, aproveitando-se as provas produzidas, embora com riscos reais de prescrição. O pano de fundo dessa decisão era a perspectiva de declaração de suspeição do ex-juiz federal Sérgio Moro, que teria consequências mais graves ainda para esses e talvez outros casos. Pessoalmente, discordo de ambas as teses, de incompetência e de suspeição, mas a primeira é menos danosa e deve prejudicar o exame da segunda.

A incompetência da 13.ª Vara Federal declarada no caso Lula pode gerar um efeito em cadeia em outras ações?

Dallagnol: É difícil que isso aconteça por duas razões. Primeiro, em grande parte dos outros casos, a competência já foi discutida e definida em todas as instâncias, inclusive no Supremo. Em segundo lugar, o ministro Fachin tratou esse caso como bastante peculiar, porque se imputou ao ex-presidente o papel de "figura central do grupo criminoso organizado", que atuou em vários órgãos, sendo a Petrobrás apenas um deles. Contudo, não podemos assegurar que a decisão não será estendida porque em Direito tudo é discutível, o sistema de Justiça brasileiro não favorece a segurança jurídica e até o passado é incerto no Brasil.

É o pior revés para a Lava Jato?

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Dallagnol: Toda anulação dos casos de corrupção comprovada na Lava Jato nos gera indignação porque buscamos Justiça e nosso trabalho respeitou as regras do jogo. Isso já aconteceu com outros casos, como o do Aldemir Bendine (ex-presidente da Petrobrás) e o caso da refinaria de Pasadena. Contudo, sem dúvidas, o pior revés para a Lava Jato foi a proibição da prisão em segunda instância.

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A Lava Jato foi um ponto fora da curva, ou ela também segue o mesmo caminho, das operações anticorrupção que foram anuladas, como a Castelo de Areia?

Dallagnol: Operações do passado foram derrubadas por inteiro. É difícil derrubarem a maior parte dos casos da Lava Jato por uma razão peculiar, que me faz lembrar uma anedota: certa vez, juízes de um tribunal discutiam um caso de tráfico de drogas e decidiram anular as provas e libertar os criminosos, por conta de uma formalidade, uma filigrana; após fazerem isso, um dos juízes perguntou aos outros 'e agora, vamos devolver as drogas?'. Se a Lava Jato for anulada, a questão que fica é: vamos devolver para os corruptos, para as contas secretas na Suíça, os R$ 5 bilhões que foram recuperados de criminosos confessos? Vamos isentar as empresas que fizeram acordo de pagar os mais de R$ 10 bilhões já compromissados para os próximos anos?

Existe uma 'impunidade institucionalizada' no Brasil?

Dallagnol: As instituições devem ser respeitadas e são essenciais para a democracia. Contudo, devem ser aperfeiçoadas. É evidente que existe uma impunidade sistêmica e, nesse sentido, institucionalizada. O foro privilegiado não funciona. Basta perguntar a cada gabinete de ministro do Supremo, quantos mandados de prisão já foram emitidos contra pessoas com foro privilegiado. A primeira vez que o Supremo prendeu alguém foi em 2013. A maioria dos gabinetes provavelmente nunca emitiu nenhum mandado, apesar de ter conduzido dezenas de investigações de corrupção. Pesquisas mostram que grande parte dos casos de foro privilegiado prescrevem.

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Já os casos que tramitam na primeira instância em regra eram anulados ou prescreviam e, desde a decisão que proibiu a prisão após o julgamento em segunda instância, as chances de se alcançar justiça se tornaram menores ainda. Quando a Lava Jato rompeu a impunidade sistêmica, isso gerou forte reação e movimentos intensos para retaliar os investigadores. Não é difícil prever um longo período de impunidade se não houver mudanças drásticas no cenário.

Deltan: 'impunidade sistêmica'. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Ag. Brasil

Uma das críticas à Operação Lava Jato foi que ela foi midiática. Houve excessos na hora de dar publicidade das investigações e dos resultados?

Dallagnol: Midiáticos foram os crimes. São os números. Quando você tem desvios de até R$ 40 bilhões, por dezenas de parlamentares, políticos e empresários da mais alta relevância no País, em dezenas de órgãos públicos, os fatos despertam imenso interesse público. O Brasil foi saqueado. A demanda por informação exigiu ampla transparência, que ao mesmo tempo serviu de antídoto, enquanto a atenção da sociedade se manteve no caso, para manobras que esvaziassem investigações, processos e punições. Todos os grandes casos de corrupção deveriam ser públicos e ser objeto de prestação de contas e relatórios, como aconteceu na Lava Jato.

O conteúdo obtido pelos hackers das trocas de mensagens da força-tarefa foi onde a Lava Jato esbarrou? Como viu a autorização, pelo STF, do uso do conteúdo em processos ?

Dallagnol: Essas mensagens, com origem criminosa e que foram editadas e distorcidas, são apenas parte do arsenal utilizado, na reação contra a operação, por poderosos que se veem ameaçados pela Lava Jato, quer porque eles ou seus aliados são investigados, quer porque têm medo de ter o mesmo destino. Essas pessoas procuram pelo em ovo nas mensagens, editando-as ou distorcendo-as para gerar notícias, minar a credibilidade e cavar nulidades. Passados dois anos, nunca as mensagens foram usadas para apontar a inocência de ninguém, mas sim para alegar supostos excessos que ninguém jamais demonstrou nos atos e decisões. Tudo sempre foi revisado e confirmado por três instâncias independentes do Judiciário.

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Como viu a decisão do presidente do STJ de abrir de ofício investigação para apurar se a Lava Jato tentou investigar ilegalmente ministros da Corte?

Dallagnol: Respeito o Tribunal da Cidadania, que é responsável por definir a interpretação das leis no nosso país, assim como seu presidente. Contudo, a vontade do julgador se sobrepôs à lei por cinco razões. Primeiro, se quiséssemos investigar, poderíamos investigar na área cível de improbidade administrativa, mas não fizemos isso. Essas mensagens que são atribuídas a nós mostram apenas cogitações. Segundo, se tivéssemos cometido o erro de investigar criminalmente os ministros, isso não seria crime pela lei brasileira e não tem como instaurar um inquérito sem crime para apurar. Terceiro, o tribunal responsável pela investigação de procuradores seria o Tribunal Regional Federal e não o STJ. Além disso, a lei determina que o procurador-geral designe um procurador para conduzir a investigação perante o tribunal, e não um magistrado, para proteger a independência do Ministério Público. Quarto, a única base do inquérito são supostas mensagens de origem ilícita e inautênticas. Investigar com base em provas ilícitas é definido como crime pela Lei de Abuso de Autoridade. Por fim, nosso sistema não permite que essa investigação seja instaurada por um investigador que é simultaneamente investigador e vítima e que não haja livre distribuição dela entre os ministros.

Se a Operação Lava Jato tivesse instaurado uma investigação com base em provas ilícitas para apurar corrupção gravíssima, e o juiz tivesse presidido a investigação, seria prontamente trancada e anulada, o juiz seria considerado suspeito e responderíamos a processos administrativos, cíveis e criminais. É surpreendente o que está acontecendo.

A Lava Jato abriu caminho para a ascensão do 'bolsonarismo'?

Dallagnol: Bolsonaro se apropriou da bandeira anticorrupção, mas não foi o único candidato a fazer isso, o que mostra que esse não foi o fator determinante para sua eleição. Quando movemos nossas investigações e processos, defendendo valores e princípios constitucionais e legais, de modo apartidário, não controlamos as consequências políticas disso. Os caminhos ou descaminhos do País são fruto da ação e omissão na sociedade de uma série de atores: políticos, jornalistas, empresários, outros líderes e entidades de todo tipo. Não controlamos os resultados. Só o que podemos fazer é lutar por bandeiras, causas e valores. Temos a consciência tranquila por termos feito isso e precisamos perseverar.

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Sob o mais duro ataque, a falta de apoio institucional do PGR à operação pesou ?

Dallagnol: Cabe ao PGR assegurar a independência da atuação de membros do Ministério Público, assim como protegê-los contra represálias. No caso do inquérito instaurado pelo STJ, o procurador-geral determinou seu acompanhamento por um colega respeitado e independente. Há outras questões que devem merecer atenção do procurador-geral, como a composição incompleta do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), a reclamação que tramita no Supremo perante o ministro (Ricardo) Lewandowski, e que pode ter implicações negativas sobre as regras estabelecidas de cooperação internacional, o pedido de ministro do TCU (Tribunal de Contas da União) para analisar as mensagens ilegais mesmo sem qualquer indicativo concreto de ilegalidade a ser apurado. Além disso, a redução da capacidade de trabalho das forças-tarefas, incorporadas nos Gaecos, mostra a importância de se ampliar o apoio para o combate à corrupção.

O legado da Operação Lava Jato está sob risco?

Dallagnol: Ou o brasileiro acorda ou, quando perceber, teremos regressado 30 anos no tempo no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. A quem interessa isso? Há uma reação contra a Lava Jato com uma série de mudanças já feitas ou sendo articuladas que desmontam o modelo de combate à corrupção que permitiu o sucesso da operação. Será uma tragédia que anunciamos desde 2015, quando alertamos para o perigo de acontecer no Brasil o mesmo que ocorreu na Itália, após a Operação Mãos Limpas. O único caminho para barrar isso passa pelo voto consciente em políticos comprometidos com propostas concretas contra a corrupção.

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