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Dados e democracia: reflexos eleitorais do adiamento da LGPD

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Por Rafael de Alencar Araripe Carneiro e Mariana Albuquerque Rabelo
Atualização:
Mariana Albuquerque Rabelo e Rafael de Alencar Araripe Carneiro. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Foi publicada no último dia 29 de abril a Medida Provisória nº 959, que prorroga o período de vacância da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/18) até 3 de maio de 2021. O adiamento da vigência da norma já vinha sendo objeto de uma série de proposições no Congresso Nacional e chegou a ser aprovado pelo Senado Federal no PL nº 1.179/2020, o qual, todavia, ainda dependia de aprovação pela Câmara do Deputados.

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Com a edição da MP nº 959, portanto, se concretiza a postergação da vigência da LGPD, medida que suscita importantes reflexões, dentre as quais se coloca a análise de seus impactos sobre o processo eleitoral no país, ponto que não tem merecido, até agora, o devido destaque.

As questões relativas ao (mau) uso de dados pessoais em processos eleitorais ganharam atenção global desde que veio à tona o escândalo envolvendo as atividades da Cambridge Analytica e do Facebook nas campanhas de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos e do referendo do Brexit no Reino Unido. O episódio, como se sabe, revelou a coleta massiva e sem autorização de dados pessoais de usuários da rede social, os quais, após tratados, permitiam traçar perfis de personalidade bastante aprofundados, incluindo características físicas, humor e outros pontos de influência (como visão política), os quais foram utilizados para direcionar conteúdos a milhões de eleitores.

Como muito bem expôs a Autoridade Europeia para a Proteção de Dados em manifestação pública sobre o assunto:

As revelações da Cambridge Analytica ilustraram como uma possível violação do direito à proteção de dados pessoais pode afetar outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, a liberdade de manter opiniões e a possibilidade de pensar livremente sem manipulação.

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O episódio colocou no centro do debate público questões como o papel das análises de eleitores (voter analytics) nos pleitos modernos; as responsabilidades democráticas das grandes plataformas de redes sociais; a transparência e accountability na realização de propaganda política direcionada e a disseminação de desinformação e fake news por atores políticos e robôs automatizados.

Todas essas matérias revelam tensões entre direitos e liberdades que formam verdadeiros pilares do sistema democrático, notadamente a liberdade de expressão e de informação, de um lado, e o direito à privacidade dos cidadãos e a necessidade de se resguardar a transparência e a organicidade do debate político, de outro.

Isso porque, se o regular desenvolvimento do processo democrático impõe a necessidade de garantir que os atores políticos possam se comunicar com o eleitorado, expor suas ideias e plataformas, e que estes tenham acesso a um amplo espectro de informações para que possam realizar sua escolha, também não se pode deixar de tutelar o direito à proteção de dados, que deflui das garantias fundamentais à personalidade e à privacidade, as quais frequentemente vêm sendo vulneradas pela coleta desregulada de dados pessoais, cuja utilização em campanhas eleitorais permite verdadeira artificialização dos discursos políticos.

Trazendo a temática para a realidade brasileira, é possível verificar que as tecnologias digitais vêm desempenhando papel cada vez maior nas campanhas eleitorais.

A minirreforma eleitoral de 2017 (Lei nº 13.488/2017), que alterou a Lei das Eleições (Lei nº 9.504/97), contribuiu para esse movimento em direção às campanhas digitais. A nova regra passou a permitir propaganda eleitoral por meio de "de blogs, redes sociais, sítios de mensagens instantâneas e aplicações de internet assemelhadas", com a ressalva de que devem ser realizadas unicamente por atores políticos (partidos, coligações ou candidatos) ou pessoas naturais, sendo vedada, portanto, a utilização de robôs e aplicações automatizadas para tal finalidade. A minirreforma também permitiu o impulsionamento de conteúdo, desde que devidamente identificado como propaganda eleitoral e contratado por partidos, coligações ou candidatos.

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Com a autorização para a realização de propaganda paga na internet, é natural que as campanhas tendam cada vez mais à utilização de dados pessoais de eleitores. Todavia, diferentemente do que se verificou no caso das eleições presidenciais norte-americanas e no referendo do Brexit, ambos marcados pela utilização de refinadas técnicas de análise do eleitor e sua micro segmentação para a realização de propagandas políticas direcionadas (micro-targeting), no Brasil, assim como em outros países em desenvolvimento, o uso da internet para a realização de propaganda eleitoral vem se dando preponderantemente por meio do aplicativo de mensagens Whatsapp.

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Com efeito, tem se verificado uma capacidade crescente de atores políticos de coletar grande quantidade de dados pessoais para realizar disparos em massa de mensagens de campanha a populações-alvo com um perfil comum, técnica que pode estar constituindo a base para a efetiva utilização de micro-targeting em um futuro próximo.

Estudo elaborado pela organização Coding Rights revelou que, nas eleições presidenciais de 2018, empresas atuantes no país se utilizaram de software para realizar cruzamentos de dados coletados legalmente em redes sociais e bases de dados públicas, com informações vendidas por grandes empresas (como Serasa Experian e Vivo). Esse agrupamento de dados lhes permitia a segmentação de eleitores de acordo com seus perfis, com sua posterior inclusão em diferentes grupos de Whatsapp criados com o objetivo de disseminar conteúdo de cunho político-partidário, por meio do envio de até 300.000 mensagens de uma só vez.

Diante desse quadro de constante evolução tecnológica, é notório o desafio a ser enfrentado pela Justiça Eleitoral para conter a realização de propaganda política fora das hipóteses legalmente admitidas e a propagação das fake news.

A vigência da LGPD certamente trará perspectivas positivas a esse cenário. Ao regulamentar a coleta, compartilhamento e utilização de dados pessoais - inclusive classificando como sensíveis os dados relativos à "opinião política", o que implica em uma regulamentação mais restritiva quanto a seu tratamento - a lei definirá necessários limites contra os abusos.

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A relevância da regulamentação da coleta de dados de eleitores resta patente quando se tem em conta que as tecnologias digitais vêm moldando e selecionando as informações que consumimos online. A aplicação desses métodos a informações de natureza política, por meio de algoritmos pouco transparentes, confere às plataformas sociais extraordinária habilidade de direcionar e influenciar posturas eleitorais.

Dessa forma, ainda que a Lei 13.709/2018 não tenha o condão de evitar a propagação de conteúdos falsos ou propagandas políticas irregulares (uma vez que não se volta a disciplinar tais fenômenos), ela certamente irá contribuir para que as atividades de marketing político-partidário sejam realizadas sobre bases mais claras, o que constitui avanço significativo em termos democráticos.

Contudo, para que tal finalidade seja alcançada, é essencial que todas as autoridades envolvidas possam ter uma compreensão ampla desse quadro regulatório complexo, que reúne direitos fundamentais e normas eleitorais. A partir dessa visão global, a Justiça Eleitoral e a autoridade de proteção de dados certamente poderão trabalhar conjuntamente para endereçar os relevantes desafios que o uso de dados pessoais tem colocado ao regular funcionamento do sistema democrático.

Esse cenário requer, naturalmente, um período de aprendizagem e de amadurecimento institucional, o que poderia ter início desde logo, nos pleitos municipais de 2020. Com o eventual adiamento da vigência da LGPD, entretanto, as autoridades brasileiras perdem importante oportunidade de reunir expertise no decorrer dessa eleição, cujas campanhas envolvem menores somas de dinheiro, o que reduz a margem para utilização de métodos de publicidade digital mais sofisticados.

Com isso, não há dúvidas de que serão muito maiores os esforços a serem empreendidos nas eleições gerais em 2022 para que as autoridades brasileiras possam enfrentar os problemas decorrentes do mau uso de dados pessoais com finalidades políticas. Inequívoco, portanto, que para além dos reflexos negativos gerados em tantas outras áreas, perde também a democracia com o adiamento da vigência da LGPD.

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*Rafael de Alencar Araripe Carneiro é sócio-fundador do escritório Carneiros Advogados, mestre em Direito Público pela Universidade Humboldt de Berlim, professor de Direito Administrativo no IDP e presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/DF

*Mariana Albuquerque Rabelo é sócia do escritório Carneiros Advogados, mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB e especialista em Direito Eleitoral pelo IDP

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