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Da luta ao luto: reflexões sobre a violência policial

Por Isadora Fingermann e Clara Serva
Atualização:
Isadora Fingermann e Clara Serva. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Brutalidade policial não é novidade no Brasil. Há mais de duas décadas, em 1997, o caso da Favela Naval já indignava a sociedade brasileira diante de cenas de barbárie expostas em rede nacional de televisão. Em 2020, foi preciso que as cenas de violência institucional se repetissem em solo norte-americano, contra um homem negro, para que os contornos raciais de um problema antigo ganhassem destaque nacional. Mas não há razão para tomar de empréstimo o drama estrangeiro, se cotidianamente testemunhamos o racismo estrutural dominar nosso sistema de justiça criminal, desde a abordagem policial até a imposição da pena.

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A sociedade brasileira, no entanto, está anestesiada. A violência policial parece não apenas ser tolerada como esperada por boa parte da sociedade, que, incorporando ineficiente discurso de violência estatal, pretende ver reduzidos alarmantes índices de criminalidade.

Não é de hoje que especialistas em segurança pública explicam que abordagens violentas, penas mais severas e encarceramento em massa nunca resolveram e não resolverão a insegurança brasileira. Investimentos em inteligência policial, ressocialização, educação de base e práticas de justiça restaurativa cumpririam com muito mais eficiência esse papel.

Se a sociedade brasileira parece não se alarmar com os níveis de violência policial a que chegamos, a tragédia, com evidentes contornos raciais, não passou despercebida à comunidade internacional.

No último dia 2 de agosto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), braço da Organização dos Estados Americanos (OEA), irmã latino-americana das Nações Unidas, manifestou preocupação quanto aos recordes históricos de violência policial no Brasil, problema que atinge com muito mais rigor a população negra.

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Não é a primeira vez que o organismo internacional manifesta preocupação com a violência policial no país. Em 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (o outro braço da OEA) condenou o Estado brasileiro pela chacina de Nova Brasilândia, no Complexo do Alemão, e, entre outros pontos, determinou que fossem publicados anualmente dados sobre as mortes produzidas durante operações policiais e que fossem implementados mecanismos de apuração, investigação e punição de integrantes da polícia responsáveis pelos arbítrios estatais.

De lá para cá pouco, ou nada, foi feito. A invisibilidade da parcela da população que verdadeiramente sofre com a violência policial - jovens, pobres, periféricos e negros - é fator determinante para que uma justiça criminal seletiva e racista se perpetue.

A polícia prende mais negros do que brancos porque aborda mais negros do que brancos. Pesquisa de agosto de 2019 do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) mostra que 64,1% das pessoas que chegam às audiências de custódia são negras, enquanto afrodescendentes, segundo o IBGE, correspondem a apenas 47,1% da população brasileira.

O descolamento entre o número de pessoas negras presas em flagrante da representatividade dessas pessoas na população nacional é consequência direta da internalização do racismo institucional nas corporações policiais. Sem que nos caiba aqui refletir se os dados decorrem de vieses conscientes ou inconscientes da Segurança Pública, as estatísticas evidenciam que a estrutura policial brasileira institucionalizou o imaginário de parte pouco esclarecida da população de que bandido bom é o bandido que foi preso - e negro.

O mesmo racismo estruturante que permeia a porta de entrada do sistema de justiça criminal é responsável pelo encarceramento em massa da população negra e periférica, na medida em que o Poder Judiciário nega com mais frequência a liberdade provisória aos negros e a eles aplica penas mais severas do que aquelas impostas à população branca por crimes análogos.

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O mesmo Poder Judiciário faz ouvidos moucos às denúncias diárias da população negra sobre violência policial durante as abordagens. A mesma pesquisa do IDDD concluiu que juízes criminais instauram inquérito policial para investigar violência policial em apenas 0,9% das denúncias apresentadas durante as audiências de custódia.

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A mensagem de impunidade recrudesce o sentimento da polícia brasileira de que não há nada de errado na violência institucionalizada contra parcela da população.

Nem se fale que a violência policial é consequência de uma criminalidade de rua crescente porque dados do segundo trimestre de 2020 da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo mostram que enquanto o roubo caiu 25,4% se comparado ao mesmo período de 2019, o número de mortes decorrentes de abordagem pela polícia militar cresceu 21,2% no mesmo período.

Se a queda da criminalidade durante a pandemia escancarou a falta de correlação entre crime na rua e violência policial, a recente publicação da CIDH é um convite para mudanças estruturais na segurança pública brasileira, com a superação do que a Comissão classifica como um "um processo histórico e estrutural de discriminação baseado na origem étnico-racial e social".

*Isadora Fingermann, sócia na área de Penal Empresarial de TozziniFreire Advogados; Clara Serva, coordenadora de advocacia pro bono de TozziniFreire Advogados

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