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Cultura: governo dos humanos ou das leis?

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Por Humberto Cunha Filho
Atualização:
Humberto Cunha Filho. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Os gregos antigos discutiam muito a respeito da dúvida de se seria melhor o governo dos seres humanos ou o governo das leis, ou seja, se deveríamos confiar nos gestores ou nos projetos coletivamente definidos, a serem executados por um mandatário qualquer, inclusive escolhido por sorteio, que era o modo preferencial e quase universal de preenchimento dos cargos públicos. De um modo geral, os democratas tendiam em favor das leis e os avessos à democracia apostavam nos humanos.

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Falei dos gregos porque sempre lembramos deles nos importantes momentos da política, como é o caso de agora, em que os prefeitos dos municípios brasileiros assumiram seus mandatos no primeiro dia deste ano e, em decorrência do poder de que foram constitucionalmente investidos, nomearam seus secretários, costumeiramente com algumas surpresas, que são mais frequentes na gestão cultural, por ser um setor muito aberto e ainda indefinido em termos de abrangência e atribuições.

Para a gestão cultural, os prefeitos ficam muito à vontade porque é fácil justificar qualquer que seja a pessoa escolhida, que pode ser médico, engenheira de pesca, geógrafo ou pecuarista; junto com a informação profissional, o anúncio vem com outra, a de que a Cultura será gerida por alguém que possui uma coleção de selos, adora vinho, toca baixo numa banda amadora ou faz poemas que já foram até premiados no concurso da escola. Resolvido, só que não, pois a comunidade cultural não vê legitimidade em quem para ela seja desconhecido.

Por outro lado, quando o escolhido é alguém da militância cultural, também a aceitação costuma ser difícil, pois é frequente a acusação de que sempre são escolhidos os mesmos ou aqueles que pertencem ao grupinho que nunca sai do poder, seja qual for o governo.

Por essa rejeição dupla (a de quem é conhecido e a de quem é desconhecido no meio) pode-se imaginar que o setor cultural definitivamente é contra, para si, à ideia de governo dos seres humanos. Todavia, essa conclusão não é compatível com um fortíssimo culto à personalidade dedicado a alguns antigos gestores culturais que, por receberem uma apreciação quase religiosa de suas gestões, nunca foram objeto de uma análise profunda e isenta do que fizeram e daquilo que eventualmente sobra dos seus legados.

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Estando envolto em dúvidas e ambiguidades, a aceitação de um governo de humanos, certamente é por isso que cresceu a ideia de gestão racional, simplificada pela sigla CPF, indicativa de que deve ser conduzida por leis que disciplinem uma estrutura composta de um conselho (C), de um plano (P) e de um fundo (F), que garantiriam os interesses culturais a despeito de quem viesse a ser o gestor. Curioso é que a rejeição de pessoas consideradas novatas no campo cultural também surge nos municípios possuidores da mencionada estrutura legal, o dito CPF, levando à conclusão de que igualmente não se confia no governo das leis.

Não obstante as controvérsias, normais em um ambiente de liberdade de expressão e de democracia pluralista, que nos permite contestar as coisas mesmo que saibamos serem por puro diletantismo ou estratégia partidária, as contradições acima expostas revelam que a situação do setor cultural padece de uma problemática qualificada, como se estivesse preso em um labirinto escuro, em que uns animam os outros apenas no sentido de continuarem vivos, mas sem interesse de produzir luz ou encontrar a saída.

Numa situação tal, em que não sabemos onde estamos e nem para onde queremos ir, revelada pela falta de confiança nas próprias propostas que apresentamos, sair contestando tudo o que aparece à frente tem a mesma validade do desabafo de uma pessoa que enxergava e passa a praguejar a esmo contra a cegueira que paulatinamente a acometeu.

A boa notícia é que essa falta de luz e de rumo pode ser momentânea e sair dela depende muito de nós mesmos. A primeira providência é a de compreendermos o que e como queremos a gestão cultural, sempre lembrando que a conclusão somente estará certa se compatível com os princípios constitucionais culturais, um dos quais é a universalização, cujo significado nos lembra que a cultura é a pátria do ser humano, ninguém devendo ser considerado nela um estrangeiro.

*Humberto Cunha Filho, professor de Direitos Culturais nos programas de Graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do Instituto Brasileito de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades, Edições SESC-SP

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