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Crimes tributários, pandemia e inexigibilidade de conduta diversa

Por Sérgio Rosenthal
Atualização:
Sérgio Rosenthal. FOTO: DIVULGAÇÃO  

Dentre os incontáveis efeitos nefastos que espraiou pelo mundo, a pandemia do novo coronavírus provocou significativo desaquecimento de quase todos os setores da economia, ensejando expressiva redução ou até mesmo a paralisação total das atividades de inúmeras empresas. Trata-se da pior crise econômica global de que se tem notícia desde a Grande Depressão causada pela quebra da Bolsa de Valores de Nova York em 1929, considerada o mais dramático período de recessão econômica do sistema capitalista do século vinte.

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No Brasil, a gravidade do momento é atestada por estudo elaborado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, que aponta projeção de queda de 5,4% no PIB de 2020, o que recente reportagem do jornal O Estado de São Paulo classificou como o fechamento trágico da pior década em termos de crescimento da economia de que se tem registro na história econômica brasileira.

Nessa conjuntura, muitos industriais, empresários, comerciantes e profissionais liberais, premidos pelas circunstâncias e sem recursos suficientes à disposição, têm sido levados a ter que optar, dentre as inúmeras obrigações a saldar, quais pagamentos devem ser realizados prioritariamente: salário de funcionários, faturas de fornecedores, conta de energia elétrica, aluguel, impostos...

Na tentativa de minimizar essas dificuldades, o governo federal adiou e até suspendeu o pagamento de alguns tributos nesse período, como a Contribuição Patronal ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e os Programas de Integração Social (PIS) e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep). Os pagamentos de abril ficaram para agosto, e os de maio, para outubro. O Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para empréstimos foi suspenso por noventa dias, assim como as contribuições para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Além disso, diversos estados também estão adotando ações destinadas a adiar o pagamento de tributos locais.

Todavia, em muitos casos, tais medidas certamente não serão suficientes a permitir o regular pagamento de todas as despesas e encargos fiscais concomitantemente.

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            Os crimes contra a ordem tributária 

Deixar de pagar impostos nem sempre remete à prática de uma infração penal. Segundo a Lei nº 8.137/90, que define os chamados crimes contra a ordem tributária, a supressão ou redução de tributo ou contribuição social é criminalizada em duas circunstâncias: quando decorre de fraude, falsificação, omissão ou prestação de declarações falsas às autoridades fazendárias (artigo 1º), ou quando o contribuinte deixa de recolher, no prazo fixado pela lei, valor descontado ou cobrado na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos (artigo 2º). É o que se extrai também dos artigos 168-A e 337-A, do Código Penal, que definem, respectivamente, os crimes de apropriação indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária.

É certo, portanto, que o inadimplemento de obrigações tributárias, observado o acima exposto, ainda que em decorrência das dificuldades financeiras causadas pelo atual estado de pandemia, pode ensejar responsabilização criminal, valendo lembrar que, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal no final de 2019, ao julgar o RHC 163.334/SC, o não recolhimento do ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço, no prazo legal, de forma recorrente, independentemente da ocorrência de qualquer fraude (ou seja, ainda que devida e corretamente declarado), configura a prática de crime. 

            A inexigibilidade de conduta diversa 

Em brevíssimas palavras e sem maiores digressões, tem-se que o crime consiste no fato típico (previsto em lei), antijurídico (ilícito) e culpável, podendo definir-se a culpabilidade como a reprovabilidade pela formação da vontade (Jeschek, Tratado, vol. I, p. 559). Isso significa que o agente somente é censurado pela adoção de uma conduta contrária ao Direito quando podia e devia agir de modo diverso, ensina René Ariel Dotti[1]. Vale dizer, o juízo de culpabilidade pela prática de fato típico e ilícito pressupõe que o agente não apenas podia, como devia agir de outra maneira. Nas palavras de Helmut Mayer, citado por Hungria, "o que não pode ser razoavelmente exigido a um homem, não lhe pode ser imposto pelo direito positivo"[2].

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Com base nesses preceitos, a jurisprudência pátria tem reconhecido, há muito, a chamada inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal (não prevista expressamente em lei) de exclusão da culpabilidade. Em outras palavras, a impossibilidade de se exigir outra conduta por parte do agente exclui o crime e impede sua punição.

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Muito embora a maior parte das decisões que tratam da inexigibilidade de conduta diversa mencione ser imprescindível a verificação da impossibilidade de agir como determinado pela lei para que seja aceita a sua aplicação, entendemos que a própria designação (que fala em inexigibilidade e não em impossibilidade) traduz o melhor sentido desta excludente de culpabilidade, cabendo ao julgador ponderar, com base nos padrões sociais vigentes e observadas as circunstâncias do caso concreto, se seria efetivamente correto exigir do agente outro tipo de ação ou omissão, como por exemplo, o recolhimento de tributos, dentro de um prazo específico, em detrimento do pagamento do salário de funcionários, ou de outra obrigação - como faturas de fornecedores - cujo inadimplemento determinaria o irremediável encerramento das atividades da empresa.

Evidentemente, meras alegações de dificuldades financeiras não podem servir como justificativa para a inobservância da lei e a prática de atos caracterizadores de crime de natureza fiscal, sob pena de criação de um estado de insegurança e subversão social, especialmente quando se tem por certo que o pagamento dos tributos é imprescindível ao regular funcionamento do Estado e que os efeitos da pandemia atingiram, de forma indiscriminada, em maior ou menor extensão, praticamente todos os contribuintes do País.

Dessa forma, para que se possa invocar esta causa excludente de culpabilidade em razão dos efeitos econômicos da covid-19, é imprescindível transcender o plano da argumentação e comprovar - por meio de elementos materiais, tais como, laudos periciais, demonstrativos contábeis e financeiros, comprovantes de títulos protestados, pedidos de recuperação judicial ou falência, ações de execução fiscal, reclamações trabalhistas, balancetes patrimoniais negativos, declaração de imposto de renda da pessoa jurídica, empréstimos bancários e penhoras, dentre outros - que no caso específico esses efeitos foram gravosos a ponto de impedir o regular pagamento dos tributos, o que é ônus da defesa, a teor do que dispõe o artigo 156, do Código de Processo Penal e do entendimento assente em nossos Tribunais  (STJ: AgRg no REsp 1264697/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJE 02/02/2016. STF, APE 516/DF, Rel. Min. Ministro Ayres Britto, D20/09/2011).

Diversos julgados que tratam do tema exigem ainda, para a verificação da inexigibilidade de conduta diversa, a demonstração do esforço de salvação da empresa por parte de seus controladores, inclusive com o sacrifício de bens e direitos particulares, posição com a qual particularmente não concordamos, uma vez que não nos parece correto afirmar que seria obrigação de um empresário empenhar patrimônio pessoal, regularmente adquirido, para o adimplemento das obrigações fiscais da pessoa jurídica.

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Por fim, é imperioso ressaltar que nossas Cortes comumente recusam a aplicação da tese de inexigibilidade de conduta diversa, em razão de dificuldades financeiras, quando a conduta praticada pelo agente não se restringe à mera omissão no recolhimento dos tributos, mas decorre da omissão de informações fiscais obrigatórias ou da prestação de informações inverídicas.

Não obstante, entendemos que essa regra admite exceções, cabendo sempre ao magistrado examinar as circunstâncias em que se deram os fatos, uma vez que a omissão ou a prestação de informações inexatas às autoridades fazendárias não excluem, necessariamente, a impossibilidade de arcar com as obrigações fiscais em decorrência de comprovado estado de penúria financeira.

*Sérgio Rosenthal é advogado criminalista e sócio de Rosenthal Advogados Associados. Foi presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo) e do MDA (Movimento de Defesa da Advocacia)

[1] Dotti, René Ariel. Curso de Direito Penal, Parte Geral, p. 335

[2] Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal, volume I, tomo II, p. 272

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