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Crimes financeiros: quando a denúncia é mais temerária do que a gestão do acusado

Por Marina Toth
Atualização:
Marina Toth. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Como sociedade, estamos muito longe de um direito penal justo, tanto em termos de aplicação e execução de penas, quanto em termos de qualidade da lei material penal.

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Quem atua na área criminal rotineiramente se depara com denúncias mal escritas, ineptas a iniciar uma ação penal, denúncias por vezes tão genéricas que é necessário verdadeiro malabarismo da defesa para adivinhar qual seria a acusação.

Apesar do ordenamento jurídico vedar denúncias genéricas, afinal o cidadão tem o direito de conhecer os pormenores da acusação feita contra ele pelo Estado, fato é que o judiciário cada vez mais flexibiliza as obrigações do órgão acusador, acolhendo uma imensidão de denúncias em desconformidade com a lei, fomentando um sistema penal de precarização da qualidade técnica das acusações, e comprometendo toda a ação penal que se segue.

A situação se agrava quando a denúncia trata de crime decorrente de tipificação penal vaga e indeterminada já em sua origem, como são os crimes de gestão temerária e gestão fraudulenta, previstos no artigo 4.º da lei 7.492/96, com penas de 2 à 8 anos, e 3 à 12 anos, respectivamente.

E justamente por serem tipos penais sem corpo delimitado, sem descrição objetiva de quais seriam as condutas puníveis, é que ambos os tipos são reputados por muitos estudiosos do direito como inconstitucionais.

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Advogados e operadores do mercado financeiro convivem com as dúvidas: o que seriam os crimes de gestão temerária e fraudulenta? quais os limites entre as ações e omissões lícitas e as ações e omissões criminosas? Inexiste na lei resposta para essas perguntas.

Porquanto os extremos, como uma fraude intencional, são facilmente identificáveis, são os limites sutis entre as condutas permitidas e proibidas que acabam com o sono de qualquer gestor de ativos. Esse vácuo legislativo sobre tipos penais indeterminados não serve à justiça e nem às melhores práticas de mercado, serve apenas ao arbítrio das autoridades judiciárias, que usam crimes de gestão como uma carta em branco para iniciar persecução penal contra agentes que atuam no mercado financeiro.

Em decorrência da reiterada negativa do judiciário em reconhecer a inconstitucionalidade que paira sobre os crimes de gestão, parte da doutrina e da jurisprudência vem tentando suprir o vácuo legislativo existente e criar parâmetros mínimos para diferenciar um crime do outro, e ambos os crimes das condutas permitidas.

Primeiramente é necessário que se reconheça a importância da intenção do agente que opera no mercado, bem como a existência de risco lícito inerente à atividade financeira, sob pena de se criminalizar a própria função exercida por aqueles que trabalham no mercado financeiro.

Dentro dos parâmetros provisoriamente aceitos para mitigar a inconstitucionalidade latente dos crimes de gestão, há de se reconhecer que inexiste crime em razão da mera ocorrência de dano ou prejuízo decorrente do risco inerente ao negócio, mas somente quando a conduta do agente financeiro extrapolar o risco da atividade financeira, ou intencionar o cometimento de evento criminoso por meio de fraude.

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Portanto, para a caracterização de gestão temerária seria necessária a violação de normas prudenciais com a assunção de risco irrazoável, aventurança com dinheiro alheio, enquanto que para a caracterização da gestão fraudulenta seria imprescindível a vontade consciente do agente de praticar ato ilícito.

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O Ministério público, por sua vez, diante de tipo penal excessivamente indeterminado, deveria avaliar criteriosamente, antes de denunciar determinada pessoa, se a conduta averiguada efetivamente assumiu risco irrazoável ou desejou intencionalmente o cometimento de fraude, apontando e descrevendo antecipadamente indícios de materialidade e autoria, incluindo indicativos da intenção do agente.

Não se pode presumir ilícitas operações de alto risco que resultarem em prejuízo. Não se pode condenar ou punir eventual audácia do gestor sem demonstrar objetivamente que o risco, mesmo quando alto, não era inerente à operação.

O órgão acusador deveria internalizar que gestores realizam a todo tempo operações arriscadas, algumas com sucesso e outras com prejuízo, mas ainda assim, lícitas.

Causa constrangimento ilegal a acusação formal que não indique a conduta específica do agente que teria violado regras de prudência ou objetivado o ilícito. A demonstração do cometimento do crime deve ser demonstrada e descrita pelo Ministério Público. É essa a obrigação do Ministério Público, é para isso que ele existe, e não pode usar prerrogativa de acusar o cidadão de forma açodada e genérica.

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Denunciar determinado gestor em razão do resultado negativo de operação de alto risco, elaborar denúncias vagas, ou denunciar o gestor pelos mesmos fatos pelos crimes somados de gestão temerária e fraudulenta, indica que a denúncia, em si, pode ser muito mais temerária do que a gestão do agente financeiro.

*Marina Toth é advogada criminalista, especializada em crimes penais empresariais. Mestre (LL.M) pela University of Michigan. Pós-graduada em Compliance e em Teoria Geral da Infração. Conselheira da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB-SP

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