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CPI da Covid: já é possível falar em responsabilização criminal?

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Por Mario Fabrizio Polinelli , Luiza Dodsworth e Jessyca Teixeira
Atualização:
Mario Fabrizio Polinelli, Luiza Dodsworth e Jessyca Teixeira. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O governo do presidente Jair Bolsonaro vem passando por mais uma onda turbulenta desde o início de seu mandato, notadamente a partir da instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, a qual tem desenvolvido diferentes linhas de investigação sobre a atuação do governo durante a pandemia que podem ensejar a punição daqueles eventualmente envolvidos nas práticas contrárias à lei.

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A dúvida que paira sobre a cabeça de tantos brasileiros é: por quais ações e omissões exatamente o presidente poderia ser responsabilizado, caso tenha havido o cometimento de atos ilícitos, e de qual forma? Basicamente duas: a primeira é quando há o cometimento de um crime comum (que pode ser praticado por qualquer pessoa), motivando a responsabilização criminal; a segunda, quando ocorre um crime de responsabilidade (cometido apenas por autoridades), que deve ser julgado em um processo de impeachment. Em uma é feito um juízo jurídico, na outra um juízo político.

No âmbito do Direito Criminal, para que um fato seja considerado criminoso, é preciso que a conduta praticada se enquadre com exatidão a um dos delitos previstos no Código Penal. É sob essa ótica que analisamos o que foi apurado até agora pela CPI.

Em relação ao "tratamento precoce", um dos crimes em apuração é o charlatanismo (art. 283, CP), praticado por quem recomenda ou anuncia a cura da doença por meio ignorado pela medicina, passando a ideia de tratamento plenamente eficaz.

A conduta que poderia se adequar a esse delito é a de promover o uso de hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina como medicações eficazes para o tratamento contra a Covid-19, muito embora não houvesse estudos científicos nesse sentido.

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Nesse caso, torna-se relevante provar que o tratamento anunciado é rejeitado pela ciência médica e, em caso positivo, se o presidente, ao anunciar tal medicação, tinha convicção de sua ineficácia. Só assim estaria configurada a intenção de praticar o crime (dolo).

Outro crime relacionado a esta linha de investigação seria o de usurpação da função pública (art. 328, CP), pela suspeita da existência do que ficou conhecido como "gabinete paralelo", composto por um suposto grupo de aconselhamento ao presidente fora da estrutura oficial do governo, que teria em tese usurpado as funções do ministro da Saúde. O crime, então, seria praticado por eles, não pelo próprio presidente.

Não se verifica, contudo, a prática do delito mencionado, porque a função exercida pelo ministro da Saúde é de natureza política e hierarquicamente sujeita ao presidente. Não à toa, todos os ministros que discordaram das políticas de saúde defendidas por ele foram exonerados do cargo.

Em última análise, quem decide é o próprio presidente, pouco importando de onde estão vindo os conselhos que ele acata. Seria diferente se os integrantes do tal gabinete estivessem praticando atos como se ministros da Saúde fossem, o que, aí sim, poderia ensejar a prática do crime. Muito embora a existência do gabinete, se confirmada, seja fato moralmente reprovável, não configura um ilícito penal.

Já em relação às supostas irregularidades nas negociações de compra de vacina, a partir dos depoimentos dos irmãos Miranda, surgiram indícios da prática do crime de prevaricação, especificamente no contrato da vacina Covaxin.

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De acordo com Luis Miranda, o presidente teria sido informado da suspeita de um esquema ilegal envolvendo a compra da vacina indiana entre o Ministério da Saúde e a Precisa Medicamentos, empresa intermediária.

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Em resposta, o presidente teria dito que tinha ciência do fato, bem como de que possivelmente o deputado Ricardo Barros, líder do governo na Câmara, estaria envolvido. Haveria ainda informado que tomaria as medidas cabíveis. Não se sabe se ou quais providências foram efetivamente tomadas.

Exatamente essa a conduta que, se comprovada, poderia ensejar o crime de prevaricação, isto é, retardar ou deixar de praticar ato de ofício ou praticá-lo contrariamente à disposição de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal (art. 319, CP).

Em outras palavras, se isso for verdade, ao não tomar nenhuma providência diante dos fatos narrados pelos irmãos Miranda, o presidente estaria se omitindo de um de seus deveres funcionais, qual seja, comunicar as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo à autoridade competente para apuração.

Ocorre que para que o crime se configure, não basta o presidente ter se omitido de seu dever funcional, é necessário que o tenha feito com o fim específico de "satisfazer interesse ou sentimento pessoal", o qual pode ser de qualquer natureza (patrimonial, material ou moral). No entanto, até o momento não foi possível fazer essa identificação.

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Também tem se falado muito no crime de corrupção, em razão aos fatos apurados na CPI. Não há indicativos nesse sentido. Talvez estejam utilizando o crime de corrupção de forma atécnica, referindo-se a qualquer prática delituosa envolvendo valores.

O crime de corrupção passiva (art. 317, CP) se dá quando um funcionário público solicita ou recebe valor indevidamente em razão de sua função. Nesse caso, é irrelevante se o funcionário efetivamente obtém a vantagem indevida, bastando a solicitação ou a aceitação da promessa dessa vantagem. O fato da compra da Covaxin não ter se concretizado, por si só, não impede que o crime tenha sido cometido, contudo, não há informações suficientes de qualquer ação do presidente nesse sentido até o momento.

Pelos fatos até aqui apurados, ainda é cedo para se falar em responsabilização criminal do presidente, sendo necessários mais elementos para delimitar sua conduta. O descontentamento de grande parte da população com a gestão do atual governo na pandemia é compreensível e bastante significativo, mas não suficiente para lhe imputar a prática de crimes na justiça ordinária.

Deve se ter em mente que o Direito Criminal é instrumento utilizado como último recurso e, por isso, são exigidas mais provas e convicção do envolvimento de uma pessoa em um delito para uma condenação criminal. Trata-se de garantia de todos os cidadãos. Nada impede, contudo, que seja dado seguimento pelo Congresso em um dos diversos pedidos de impeachment em face de Jair Bolsonaro por cometimento de crime de responsabilidade, eis que se estaria diante de um juízo político e não jurídico.

*Mario Fabrizio Polinelli, Luiza Dodsworth e Jessyca Teixeira, sócios do escritório Carlos Eduardo Machado Advogados

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