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Covid-19: uma licença indiscriminada para desrespeitar ou encerrar relações contratuais?

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Por Marco Aurélio Cunha
Atualização:
Marco Aurélio Cunha. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

As medidas de saúde adotadas pelo governo federal e pelos governos estaduais para conter o avanço do coronavírus, como o isolamento social e o fechamento de negócios não essenciais, estão e irão continuar gerando uma série de impactos na economia brasileira nos próximos meses. E todas essas ações trazem consigo consequências jurídicas nas relações contratuais existentes.

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Assim, buscaremos analisar ao longo do presente texto de que maneira tais medidas afetam os acordos vigentes e as quais medidas as partes de um contrato podem recorrer no caso de a relação contratual tiver sido impactada pela pandemia e/ou as medidas adotadas para contê-la:

A pandemia causada pelo vírus SARS-COV-2 deve ser enquadrada, sem sombra de dúvidas, como um evento de força maior, assim como todas as catástrofes que têm origem em uma causa natural e que independem da ação do homem (como fenômenos meteorológicos, terremotos, etc), uma vez que se enquadra na definição prevista no Código Civil de "fato necessário, cujos efeitos não eram possível evitar ou impedir".

Dentro do nosso sistema jurídico, os casos fortuitos e de força maior podem ser compreendidos como uma licença jurídica garantida às partes de um contrato para descumprirem as obrigações contratuais assumidas sem estarem sujeitas a penalidades, isso porque o Código Civil Brasileiro prevê, como regra geral, que as partes não respondem pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, exceto na hipótese em que tenham por eles se responsabilizado expressamente no contrato.

 No entanto, isso não significa que todas as relações contratuais em vigor podem ser descumpridas, ou mesmo devam ser revistas ou terminadas em razão da pandemia da covid-19.

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 Antes de mais nada, é indispensável que o evento de força maior tenha impactado diretamente a capacidade de uma as partes de adimplir as obrigações assumidas no contrato.

 Ou seja, caso uma parte deseje suscitar a pandemia ou as medidas adotadas pelo governo no sentido de contê-la para justificar sua inadimplência (e consequentemente eximir-se dos danos dela decorrentes), ou mesmo para buscar uma renegociação dos termos contratuais, deverá demonstrar à outra parte de que modo a pandemia ou as medidas governamentais impactaram sua habilidade para adimplir o contrato. Essa isenção de responsabilidade, entretanto, não se estende , via de regra, à parte que já se encontrava em mora antes do advento do evento de força maior.

Ainda que o contrato preveja expressamente a possibilidade de rescisão na hipótese em que sobrevenha um caso fortuito ou de força maior, deverá ser demonstrado pela parte afetada o efeito de causa-consequência entre a pandemia da covid-19 (ou das medidas governamentais para contê-lo) e a impossibilidade de cumprir as obrigações contratuais para se admitir a rescisão sob tal argumento.

 Caso a parte prejudicada tenha êxito em demonstrar o efeito de causa-consequência, incidindo na hipótese prevista na cláusula resolutiva, o término do contrato operar-se-á de pleno direito.

No entanto, ainda que a pandemia da covid-19 ou as medidas governamentais não impeçam as partes de cumprirem o objeto do contrato ou suas obrigações acessórias, muitas vezes o seu adimplemento demonstrar-se-á, na prática, excessivamente dispendioso para uma das partes, acarretando em um relevante desequilíbrio econômico-financeiro no âmbito do contrato.

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 Embora a regra geral vigente seja o estrito cumprimento das obrigações contratuais conforme pactuadas entre as partes (regra esta que foi reforçada com a edição da Medida Provisória 881/19, também conhecida como MP da Liberdade Econômica, a qual prevê que a revisão contratual em juízo somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada), a superveniência de um evento extraordinário e imprevisto, que resulta em um relevante desequilíbrio econômico-financeiro na relação contratual (como pode ser o caso da pandemia da covid-19), autoriza uma revisão das bases contratuais.

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 Nesse caso, a parte prejudicada poderá pleitear amigavelmente à outra parte uma renegociação dos termos contratuais, e, na impossibilidade de atingir-se um novo acordo, requerer judicialmente sua revisão ou, em casos excepcionais, a própria rescisão. É o que se chama de "Resolução Por Onerosidade Excessiva", que encontra fundamento na "teoria da imprevisão", insculpida no artigo 478 do Código Civil.

 Não obstante a situação toda seja bastante recente, o judiciário já foi instado a solucionar questões envolvendo contratos empresariais diretamente afetados pela pandemia da covid-19.

 Uma matéria que tem sido levada à apreciação do poder judiciário de forma recorrente é a revisão de contratos de locação não-residencial atinentes a negócios diretamente afetados pelas medidas de controle da pandemia (como, por exemplo, lojas de shopping, que são estabelecimentos impedidos de abrir e operar regularmente).

 Embora se possa encontrar algumas decisões dissonantes, há uma clara tendência do judiciário em tutelar a parte mais prejudicada dessa relação (nesse caso, o locatário). O judiciário tem reduzido substancialmente o valor do aluguel devido durante o período da pandemia e, em determinados casos, afastado integralmente a cobrança sob o argumento que o empreendedor (locador) não consegue cumprir a sua obrigação básica contratual, qual seja, disponibilizar o imóvel e seu uso ao fim que se destina.

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 Em outros casos, como aqueles envolvendo a realização de shows e eventos, o poder executivo se antecipou e, por meio da MP 948 determinou a regra geral a ser observada pelas partes afetadas, pacificando eventuais tensões que poderiam derivar dessas relações.

 Como se vê, a pandemia da covid-19 traz intrinsecamente uma série de consequências jurídicas às relações contratuais, podendo inclusive causar o rompimento do vínculo contratual nos caos mais agudos. No entanto, é absolutamente impossível traçar à priori uma regra geral a ser aplicada a todos os contratos empresariais, uma vez que o caso concreto tem peso decisivo na análise e resolução de cada caso.

*Marco Aurélio Cunha, sócio da Guarnera Advogados. Mestre em Direito Comercial pela USP

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