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Covid-19: pais que se negarem a vacinar seus filhos menores podem ser punidos?

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Por Douglas Ribas Jr.
Atualização:
Douglas Ribas Jr. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Teve início a vacinação contra a Covid-19 das crianças de 5 a 11 anos, o que intensificou a discussão se a imunização é obrigação ou mera faculdade dos pais, especialmente no cenário complexo e excepcional da atual pandemia, marcado pelo avanço da variante Ômicron.

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A exemplo do que se vê no cenário político, o assunto está longe de ser pacífico, despertando polêmica e posições antagônicas, até mesmo polarizadas.

De início, importante ter em mente que de acordo com a nossa Constituição Federal ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5º, II da CF).

Trata-se do princípio da legalidade, um dos pilares do Estado de Direito, limitando o poder estatal e assegurando aos cidadãos seus direitos individuais e a autonomia das suas vontades, na medida em que o Estado apenas pode agir de acordo com a lei, enquanto aqueles que o integram podem fazer tudo aquilo que a lei não os proibir.

Pois bem, especificamente quanto à vacinação dos menores, convém aclarar que a ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária - aprovou em 15 de dezembro de 2021 a ampliação do uso da vacina contra a Covid-19 para aplicação em crianças de 05 a 11 anos. Em 16 de dezembro referida Agência oficiou ao Ministério da Saúde recomendando ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) a inclusão de aludida vacina, ressaltando que cabe ao aludido ministério a decisão quanto à adoção de tal medida.

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As informações constantes do parágrafo anterior foram quase que integralmente transcritas da Nota Técnica nº 2/2022, emitida pela Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid (SECOVID), instituída pelo Decreto nº 10.697, de 10 de maio de 2021, cujo objetivo é representar o Ministério da Saúde na coordenação das medidas a serem adotadas durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do novo coronavírus.

A situação demonstra que tecnicamente houve recomendação para que a vacinação das crianças de 05 a 11 anos viesse a constar do PNI, valendo lembrar que referido plano foi criado por lei em 1973, passando a vigorar em 1975 com o propósito de coordenar, garantir a continuidade e ampliar a abrangência da vacinação no território nacional.

No entanto, embora tenha como papel representar o Ministério da Saúde, quanto aos indivíduos de 05 a 11 anos de idade a SECOVID textualmente preconiza que a vacinação contra a Covid-19 ocorra de modo não obrigatório.

Para uma completa análise da questão, imprescindível a leitura do parágrafo 1º do artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que dispõe que é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.

De se notar, então, que há previsão legal expressa determinando a vacinação infantil nos casos em que as autoridades sanitárias a recomendam.

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Ademais, não se pode perder de vista que nosso Supremo Tribunal Federal já apreciou o assunto decidindo que "é constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, tenha sido incluída no plano nacional de imunizações; ou tenha sua aplicação obrigatória decretada em lei; ou seja objeto de determinação da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar".

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Não bastasse isso, o Plenário do STF já decidiu que é dever dos pais vacinar os filhos frente a qualquer doença passível de imunização, ainda que não tenha sido incluída a vacina no PNI, ou seja, a inclusão no plano nacional de imunizações não é condição para a obrigatoriedade da vacina, eis que, no entender da Suprema Corte, há outras hipóteses que podem levar ao dever de que os pais vacinem seus filhos.

É esse o pano de fundo que faz com que se tenham, basicamente, duas posições sobre o tema:

  • aqueles que defendem a obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19 dos menores entre 05 e 11 anos de idade fazem-no com base no entendimento do STF e no Estatuto da Criança e do Adolescente;

  • em sentido contrário, os que sustentam que a tal vacinação não é obrigatória têm como argumento a falta de inclusão da vacina no PNI.

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Fato é que se o Ministério da Saúde vier a incluir a vacinação em debate no PNI, tal como recomendou a ANVISA, ao menos formalmente, muito da discussão perderá seu objeto.

Curiosamente, um dos argumentos adotados por quem é contrário à vacinação (não só das crianças) tem teor jurídico. Melhor explicando, muitos entendem que o item 5.5 do contrato da empresa PFIZER com o Ministério da Saúde autoriza posição contrária à vacina, senão vejamos:

"5.5 Reconhecimento do comprador: o Comprador reconhece que a Vacina e os materiais relativos à Vacina, seus componentes e materiais constitutivos estão sendo desenvolvidos rapidamente devido às circunstâncias de emergência da pandemia de COVID-19 e continuarão sendo estudados após o fornecimento da Vacina para o Comprador de acordo com esse Contrato. O Comprador ainda reconhece que a eficácia e os efeitos a longo prazo da Vacina ainda não são conhecidos e que pode haver efeitos adversos da Vacina que não são conhecidos atualmente."

Ora, o que se lê acima, nada mais é do que um disclaimer, um aviso legal buscando isenção de responsabilidade, tal como encontramos em muitas bulas de remédios habitualmente consumidos. Seria mesmo o suficiente para criar medo tamanho a ponto de condenar e evitar a vacinação?

Acredito que não, da mesma forma que o argumento de que "a vacina não resolve nada, prova disso é que vacinados com 03 doses ainda vêm desenvolvendo Covid-19" adotado por muitos que são contra a vacina não me parece fazer sentido. À uma porque uma das premissas da vacinação não é, simplesmente, blindar os vacinados, isentando-os de que adquiram a doença, mas sim evitar que desenvolvam a infecção causada pelo novo coronavírus, a qual pode evoluir para quadros mais graves, por vezes levando à morte. Ainda assim, há estudos comprovando a eficácia das vacinas, não apenas para evitar os efeitos mais severos da doença, como também evitando o aumento da transmissão em razão da criação de anticorpos do sistema imunológico.

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Nesse sentido, as estatísticas não só no Brasil, mas mundo afora parecem autorizar a conclusão de que a vacinação tem atingido bem seu objetivo, haja vista que vem protegendo contra as formas graves da Covid-19, reduzindo a propagação dos casos mais graves e mitigando o risco de morte.

COLETIVO X INDIVIDUAL

Para um bom desfecho da questão, prudente que se analise a situação sob o prisma dos interesses coletivos e individuais. Especialistas afirmam que somente a imunidade coletiva que se obtém com a vacinação tem o condão de conter a pandemia.

Partindo-se de tal premissa, muitos sustentam que não são legítimas escolhas individuais no que tange à vacinação em período de pandemia, tendo em vista que referidas escolhas podem afetar gravemente direitos de terceiros. Na mesma seara, não há dúvida de que o Estado tem legitimidade para proteger o cidadão, até mesmo contra a sua vontade.

Nesse sentido a opinião da médica Ludhmila Hajjar, para quem a vacinação contra a Covid-19 em crianças deveria ser obrigatória, haja vista que "nossa liberdade termina quando afeta a do outro. No momento em que eu escolho, por ignorância, fake news, não vacinar meu filho, ele vai para escola e pode transmitir a doença para outra criança, professor, e manter o vírus circulando".

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Como bem já decidiu o STF, o poder familiar não autoriza que os pais invoquem convicção íntima ou filosófica no afã de se negarem a vacinar seus filhos.

Mostra-se razoável, pois, que o interesse público se sobreponha ao privado de modo que, a partir da prática internacional cujos resultados são inquestionavelmente favoráveis à ciência, pais e responsáveis acolham a recomendação dos especialistas e vacinem as crianças de 05 a 11 anos de idade.

CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DA NÃO VACINAÇÃO

O assunto vinha gerando acalorados debates, antes mesmo da Covid-19, tanto é que já havia chegado ao Supremo Tribunal Federal. Não por acaso no último Fórum Nacional da Justiça Protetiva (FONAJUP), do qual participaram juízes de varas da infância e da juventude de todo o Brasil, foi aprovado o Enunciado 26, que assim assevera:

Enunciado 26 - Os pais ou responsáveis legais das crianças e dos adolescentes que não imunizarem seus filhos, por meio de vacina, nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias, inclusive contra COVID 19, podem responder pela infração administrativa do art. 249 do ECA (multa de 3 a 20 salários-mínimos e/ou estarem sujeitos à aplicação de uma ou mais medidas previstas no artigo 129 do ECA)"

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O artigo 129 do ECA assim prevê:

Art. 129. São medidas aplicáveis aos pais ou responsável:

I - encaminhamento a serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família;

II - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;

III - encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;

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IV - encaminhamento a cursos ou programas de orientação;

V - obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua frequência e aproveitamento escolar;

VI - obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado;

VII - advertência;

VIII - perda da guarda;

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IX - destituição da tutela;

X - suspensão ou destituição do poder familiar.

Entendimento mais radical vislumbra que além das penalidades impostas pelo ECA, os pais que se negarem a vacinar seus filhos poderão se sujeitar a responder por crimes previstos no Código Penal, como abandono, tentativa de homicídio, homicídio doloso (dolo eventual - tendo em vista conhecer os riscos e assumi-los), além de delitos contra a saúde pública.

MATRÍCULA ESCOLAR E FREQUÊNCIA ÀS AULAS

As escolas em São Paulo têm a obrigação legal de informar o conselho tutelar se os pais não apresentarem o comprovante de vacinação das crianças. Tal exigência diz respeito à vacinação como um todo, não se limitando à vacina contra o novo coronavírus. No entanto, a criança não é impedida de frequentar a escola, como forma de assegurar o acesso à educação.

Se instado a agir quando notificado pela escola, o conselho tutelar pode convocar os pais com a finalidade de alertá-los e orientá-los sobre a necessidade da vacinação. A persistir a inobservância dos pais, estarão passíveis de sofrer processo nas Varas da Infância e Juventude, mediante representação do conselho tutelar.

Nos termos previstos no ECA, os processos contra os pais ou responsáveis tanto podem implicar em multa de 03 a 20 salários-mínimos, aplicando-se o dobro do valor em caso de reincidência, quanto podem, segundo o entendimento de alguns, acarretar a suspensão ou perda do poder familiar.

Para o Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, Mário Sarrubbo, "não é uma questão de crença, de ideologia, de política, é uma questão de saúde, seja da própria criança, seja da comunidade toda, de toda a sociedade, que não se pode abrir mão. Há recomendação da ANVISA, das autoridades internacionais e consenso amplo na comunidade científica de que as crianças devem ser vacinadas".

Segundo ele, o Ministério Público paulista entende que a vacina contra Covid-19 nas crianças entre 05 e 11 anos é obrigatória e ao receber as informações dos conselhos tutelares sobre tal desrespeito avaliará caso a caso como proceder.

A posição do MP de São Paulo vai ao encontro do que preconiza o advogado Ariel Castro Alves, membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. No entendimento dele, "pais e mães, ou responsáveis, que descumpram, não autorizem ou impeçam a vacinação, podem responder por essa infração de descumprimento do poder familiar, prevista no ECA e processos de suspensão ou perda do poder familiar por negligência perante as varas da Infância e Juventude".

Igualmente controverso é o entendimento se escolas particulares, a exemplo do que se tem visto em recintos privados como clubes, casas de shows e outros podem exigir a comprovação da vacinação das crianças entre 05 e 11 anos de idade para a liberação de acesso às suas dependências.

Predomina a posição de que o acesso à educação deve ser absoluto, sendo inviável que a escola particular possa instituir regramento que limite o ingresso dos seus estudantes. Contudo, há quem defenda que deve prevalecer o interesse da coletividade sobre o interesse privado, sendo lícito que a escola proíba, no afã de preservar professores, colaboradores e demais alunos, estudantes cujos pais sejam resistentes à imunização dos seus filhos.

ACUSAÇÃO DE ABUSO DE AUTORIDADE

A despeito do Enunciado 26 acima transcrito e do teor do artigo 14, parágrafo 1º do ECA, dada a falta de consenso sobre o assunto, especialmente em razão da ausência de expressa determinação do caráter obrigatório da vacina contra Covid-19 nas crianças, há quem defenda que a perda da guarda ou qualquer outra medida mais drástica eventualmente aplicada por decisão judicial contra pai, mãe ou responsável que se negar a vacinar criança entre 05 e 11 de idade pode ser entendida como abuso de autoridade (Lei 13.869/19).

Então, para alguns, tanto a aplicação do Enunciado 26 do FONAJUP, quanto eventual restrição a direito dos menores frequentarem estabelecimento infantil poderá ser tida como abusiva.

CONCLUSÃO

Enquanto o Governo Federal não incluir a vacinação contra a Covid-19 das crianças entre 05 e 11 anos de idade no PNI, tal como recomendou a ANVISA, o tema continuará suscitando dúvidas e discussões.

Mais importante do que a obrigatoriedade e a legitimidade das penalidades a serem impostas acaso pais optem por não vacinar seus filhos é a consciência de que a proteção apenas vai ocorrer se mais e mais pessoas se vacinarem, sejam elas crianças ou adultas. É uma questão que transcende a liberdade individual, na medida em que afeta toda a coletividade.

Ademais, dados da Sociedade Brasileira de Pediatria indicam que a Covid-19 matou cerca de 3000 crianças e adolescentes até 19 anos de idade no Brasil, já sendo uma doença mais letal do que a soma de todas as outras que podem ser evitadas através das vacinas disponíveis no SUS.

Portanto, se a conclusão da população de que é essencial a vacinação em massa para controlar a pandemia não vier através do debate e da conscientização, defendo que caberá ao Estado, enquanto guardião da sociedade a adoção de meios de coerção para garantir que o país alcance a imunidade coletiva, como o são as penalidades que podem ser impostas aos pais, a exigência de comprovante de vacinação para a realização de matrícula escolar e até mesmo para o exercício de determinados direitos e programas sociais, como o Bolsa Família.

Por fim, deve ficar claro que não se trata de vacinação forçada ou compulsória, já que o cidadão não é pego à força e conduzido para ser vacinado. Trata-se de vacinação obrigatória, cabendo a quem optar por não se vacinar, assumir as consequências da sua escolha. Tal como ocorre com qualquer um de nós ao incorrer em conduta vedada pelo nosso ordenamento jurídico. Sujeita-se às sanções previstas em lei.

*Douglas Ribas Jr., advogado. Atua em contencioso e consultoria, especialmente nas áreas do Direito Civil, Consumidor, Comercial, Contratos, Imobiliário, Trabalho e Societário. Revisor-geral do escritório Douglas Ribas Advogados Associados

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